Sufismo
Ó Deus!
Se Tu não o desejas, o que se manifesta?
Se Tu não o chamas, quem acode?
Ao terreno incultivável, de que lhe serve a água?
A quem não a merece, para que dar resposta?
Ao que é amargo, de que lhe serve a vizinhança da água?
Ao espinho, de que lhe serve estar junto à rosa?
(Ansari)
Um dia fui escravo: o desejo era meu senhor,
O desejo então se tornou meu servo, eu estava livre:
Ao deixar os recantos dos homens, busquei Tua Presença,
Só, encontrei em Ti minha companhia.
Não é no mercado que se encontra o tesouro,
Nem entre os ignorantes, que não Te conhecem,
Que zombam de mim, pensando que minha busca é loucura,
Mas no fim, Tu estarás comigo.
(Algazel)
Dhul-Nun, o egípcio, disse: “O sufi é aquele cuja linguagem, quando fala, reflete a realidade do seu estado, ou seja, ele não diz nada que não seja, e quando está em silêncio, sua conduta explica seu estado, e seu estado proclama que ele rompeu todos os laços deste mundo”.
(VITRAY-MEYEROVITCH, Eva de (org.). Anthologie du soufisme. 2. éd ed. Paris: Sindbad, 1986.)
... Se este coração meu for o reflexo daquela sina,
Por que são seus estados tão variados?
Ora está enfermo como Seu olho intoxicante,
Ora esvoaçante como Sua madeixa.
Ora reluzente como uma Lua como aquele rosto,
Ora escuro como aquela sina negra.
Ora é uma mesquita, ora uma sinagoga,
Ora um inferno, ora um céu.
Ora exaltado acima do sétimo céu,
Ora submerso abaixo 'deste monte' de terra.
Após devoção e ascetismo torna-se novamente
Viciado em vinho, lâmpada e beleza.
O mundo é o dote dado ao homem pela Alma Universal.
Deste matrimônio a prole é a eloquência,
O conhecimento, a linguagem, a virtude, a beleza terrena.
A beleza celestial desce do mundo invisível,
Desce qual algum folião licencioso,
Arma sua bandeira na forte cidade da beleza terrena,
Lança em confusão toda a ordem do mundo.
Ora cavalgando realmente no corcel da formosura,
Ora brandindo a aguda lâmina da linguagem.
Quando contemplada numa pessoa, chama-se beleza,
E quando ouvida no discurso, eloquência.
Santos, reis, dervixes, apóstolos,
Todos igualmente se curvam e reconhecem seu domínio.
Que encanto é este na beleza de um rosto formoso?
Não é meramente beleza terrena, dizei o que é?
Aquele arrebatamento do coração só pode vir d'A Verdade,
Pois não há parceiro na agência Divina.
Como pode ser a luxúria que arrebata os corações dos homens?
Pois A Verdade ora aparece como mal.
Confessai a 'atuação' d'A Verdade em todo lugar,
Não avanceis além de vossos próprios limites.
Reconhecei A Verdade no traje do bem como a verdadeira fé,
A Verdade no traje do mal é a obra de Satã.
Os princípios de um bom caráter são a equidade,
E depois a sabedoria, a temperança, a coragem.
Aquele que é dotado de todas estas quatro
É um sábio perfeito em pensamento e ação.
Sua alma e coração são bem informados pela sabedoria,
Não é nem demasiado astuto nem um tolo.
Pela temperança seus apetites são subjugados,
A intemperança e a insensibilidade igualmente são banidas.
O homem corajoso é puro da abjeção e da jactância,
Sua natureza é isenta de covardia e temeridade.
A equidade é como a vestimenta de sua natureza,
É vazio de injustiça, assim seu caráter é bom.
Todas as virtudes residem no meio-termo,
Que é igualmente removido do excesso e do defeito.
O meio-termo é como a 'via estreita',
De cada lado se abre o poço sem fundo do inferno…
O conhecimento nunca se une à cobiça do mundo,
Se desejas o anjo, expulsa o cão.
O conhecimento da fé brota das virtudes angélicas,
Não entra num coração com natureza de cão.
Assim corre o dito d'O Eleito,
Notai bem, porque verdadeiramente é assim.
Quando a forma está contida na casa,
Os anjos não entram nela à força.
Ide, limpai a face das tábuas de vosso coração,
Para que um anjo faça sua morada convosco.
Obtende dele o conhecimento que é vossa herança,
Começai a lavrar vosso campo para a colheita do mundo vindouro.
Lede os livros d'A Verdade – vossa alma e os céus,
Ornai-vos com o princípio de todas as virtudes.
E. H. Whinfield – Shabistari
Quem você já viu no mundo inteiro
Que alguma vez tenha adquirido prazer sem dor?
Que, ao alcançar todos os seus desejos,
Permaneceu no auge de sua perfeição?
Quem é o viajante no caminho para Deus? É aquele que tem consciência de sua própria origem. Ele é o viajante que avança rapidamente: tornou-se puro do ego, como a chama do fumo. Vai, limpa a morada do teu coração, prepara-o para ser a habitação e o lar do Amado: quando saíres, Ele entrará. Dentro de ti, quando estiveres livre do ego, Ele revelará Sua Beleza. Quando tu e teu verdadeiro ser forem purificados de toda impureza, não haverá mais distinção entre as coisas, o conhecido e o conhecedor serão um só.
Mas a união com Deus está longe das coisas criadas. Ser Seu amigo é tornar-se um estranho para si mesmo. Quando for possível ao contingente desaparecer, nada restará senão o essencial. A Unidade é como um mar... olha e vê como uma gota desse oceano assumiu tantas formas e recebeu tantos nomes—névoa, água, chuva, orvalho, barro, planta, animal e, finalmente, o homem em sua perfeição. Tudo vem de uma única gota, no fim como no início: dessa gota todas essas coisas foram moldadas.
As ilusões se dissipam: num só momento, em todos os lugares, resta apenas a Verdade Criadora. Naquele instante, tu te aproximas Dele: separado do ego, podes unir-te ao Amado. Em Deus não há dualidade. Naquela Presença, "eu" e "nós" e "tu" não existem. "Eu" e "tu" e "nós" e "Ele" tornam-se um só. Pois, na Unidade, não há distinção—a Busca, o Caminho e o Buscador tornam-se um.
Ouvi dizer que, no mar de ‘Umān, as conchas de pérolas emergem no mês de abril. Das profundezas do oceano, elas sobem e repousam na superfície, de bocas abertas. Uma névoa se ergue do mar e, por ordem do Senhor Todo-Poderoso, desce como chuva: algumas gotas caem em cada boca aberta, que então se fecha como se estivesse envolta por mil laços. A concha afunda novamente no fundo do mar, de coração pleno, e cada uma dessas gotas se transforma em uma pérola. O mergulhador lança-se ao oceano e dele extrai uma joia incomparável.
Toda formiga que deixa seu formigueiro e vai para o deserto verá o sol — mas não saberá o que vê. Que ironia! Todos percebem a Beleza Divina com o Olho da Certeza, pois na realidade nada existe exceto a Unidade Transcendente; eles olham, eles veem, mas não compreendem. Eles não tiram prazer da vista, pois para desfrutá-la é preciso saber pela Verdade da Certeza o que se está vendo, por Quem e por quê.
O místico que contemplou a Visão da Unidade vê, primeiramente, a luz da Existência Real: ainda mais, ao ver, pela sua gnose, a luz pura, em tudo o que ele percebe, vê Deus antes de tudo. A condição para uma boa reflexão é a solitude, pois nesse estado um brilho da Luz Divina nos auxilia. O essencial não possui semelhança com o contingente. Como poderia ser compreendido pelo homem? Quão insensato é aquele que busca o Sol radiante com a luz de uma vela em pleno deserto!
O não-ser é o espelho do Ser, isto é, do Ser Absoluto. Nele se reflete a glória da Verdade Criadora. Quando o não-ser é colocado diante do Ser, num instante a reflexão surge nele. O não-ser é um espelho, e o mundo, a reflexão e o homem são como o reflexo de um olho... o olho do Oculto. Embora o espaço que é o centro do coração seja pequeno, ele ainda se revela como uma morada apropriada para o Senhor dos Dois Mundos.
Sob o véu de cada partícula está oculta a beleza revigorante da Face do Amado. Para aquele cuja alma vive na contemplação da Visão de Deus, o mundo inteiro é o livro do Altíssimo.
Um, embora na contagem seja utilizado por necessidade, não se torna mais do que um pela contagem. Como podes duvidar de que isso é como um sonho, que ao lado da Unidade, a dualidade é apenas uma ilusão? As diferenças que aparecem e a aparente multiplicidade das coisas vêm do camaleão da contingência. Como a existência de cada uma delas é Una, todas testemunham a Unidade da Verdade Criadora.
Tudo o que se manifesta neste mundo é como um reflexo daquele mundo: como um cacho de cabelo, uma barba, uma pinta e uma sobrancelha—pois tudo, em seu devido lugar, é bom. A manifestação da Glória Divina ora se dá por meio da Beleza, ora por meio da Majestade. O mundo Divino é infinito—como poderiam palavras finitas alcançá-lo? Todos esses mistérios, que só podem ser compreendidos pela experiência direta, como poderiam ser explicados pela fala humana? Quando os gnósticos interpretam esses mistérios, é por meio de símbolos que o fazem.
O vinho, a lâmpada e o amado são símbolos da Realidade Una, que em cada forma se manifesta em Sua glória. O vinho e a lâmpada representam a luz e a experiência direta do conhecedor. Contempla o Amado, que está oculto para ninguém. Bebe, por um instante, o vinho do êxtase—talvez ele possa libertar-te do poder do ego. Sim, digo-te, bebe esse vinho para que ele possa libertar-te de ti mesmo e conduzir a essência da gota ao oceano.
Tornar-se um frequentador de tabernas é libertar-se do ego: o egotismo é infidelidade, ainda que alguém pareça ser devoto. A taberna pertence ao mundo incomparável, à morada dos amantes que nada temem. A taberna é o lugar onde o pássaro do espírito faz seu ninho; a taberna é o santuário do próprio Deus.
1 No Caminho do Amor todos os ídolos são sinais e emblemas que teofanicamente significam Unidade e Amor; o símbolo do cinto é tua fidelidade em servir a humanidade.
2 Visto que tanto a fé quanto a infidelidade — tanto a piedade quanto a blasfémia — no Ser estão sempre permanecendo e residindo, assim a idolatria e a Unidade são ambas uma só essencialmente.
3 Visto que do Ser todas as coisas estão procedendo em diversidade, então alguém desta totalidade deve, em última instância, tomar a forma de um ídolo.
4 Observado da extensão e do âmbito do Ser, o ídolo é toda Verdade. Pensa profundamente, ó erudito: a Falsidade
5 ali não adere. Visto que Deus Todo-Poderoso o forjou e ele é um arquiteto perfeito, então do Bem, tudo aquilo que emana — sabe que procede beatificamente.
6 Pois o Ser é o summum bonum, o bem mais alto, em toda a parte que olhas; a fonte do mal e da aflição que ali existe reside noutro lugar — na Nulidade.
7 Se os muçulmanos soubessem o que os ídolos são, clamariam que a própria fé está na idolatria.
8 E se os politeístas pudessem apenas tornar-se cientes do que os ídolos são, não teriam motivo para errar
9 nas suas crenças. A imagem esculpida que eles viram é apenas obra externa e forma, e assim, pela Escritura Sagrada, o seu nome é ‘infiel’.
10 Ninguém te chamará de ‘Muçulmano’, assim, pela palavra da Lei, se não podes perceber a Verdade nela oculta, ver o Deus dentro de um ídolo escondido.
11 Quem vê desvelada a real infidelidade e face a face percebe a verdade-da-heresia detesta todos os ritos, todas as formas de falsidade ‘islâmica’ fingida.
12 Toda infidelidade tem Fé no interior; dentro do coração de cada ídolo uma alma reside e toda heresia tem hinos e litanias
13 e diariamente, a infidelidade recita o rosário — "Em verdade, tudo o que existe, canta os seus louvores. então onde está a tua inimizade?
14 No que digo — divaguei ou falhei o Caminho?
Diz “‘Deus!’ — e deixa esses tolos na vaidade e no jogo."
15 Quem mais senão Deus poderia dourar a sua face ou dar a um ídolo tal fineza e graça? A não ser que seja a sua vontade, quem seria um votário de um ídolo?
16 O Agente, o Orador e o Ator também — todos estes eram ele. Ele não agiu erradamente, ele falou corretamente, e esteve, de facto, bem e bom.
17 ‘Vê Um, diz Um, conhece Um:’ este axioma resume a raiz e os ramos do Iman.
18 A palavra do Alcorão atesta isto, não apenas eu o professo: "Não existe falha," diz a Escritura "na criação do Todo-Misericordioso."
A graça do favor do Senhor Altíssimo manifesta-se eternamente em Sua obra. De um lado, veem-se prosperidade e perfeição; do outro, a cada instante, tudo se transforma. Mas quando o estado deste mundo se dissipar, tudo será eterno no mundo vindouro. Corpo e alma aparecerão como uma única substância imaculada, e contemplarás a Verdade Criadora como Ela é, sem véus: pela luz da Verdade Criadora, serás transfigurado.
Quando eu tiver visto essa Visão e bebido desse vinho, não sei o que acontecerá comigo a partir de então.
Do ponto surge uma linha e, em seguida, um círculo;
Quando o circuito desse círculo estiver completo,
Então o último se junta ao primeiro.
Shabistarî
Não é de se temer que o Caminho o confunda, mas, em verdade, é de se temer que a paixão o domine.
Ibn 'Aṭâ'illâh (TTW)
Até onde sabemos, Hallaj não citou esse versículo, embora pareça fazer referência a ele. Seu próprio apelido significa "cardador de algodão", que foi sua primeira profissão. Portanto, ele deve ter se sentido diretamente desafiado por essa impressionante imagem corânica, a partir da qual desenvolveu o motivo da borboleta em voo. Da mesma forma, Hallaj evoca o "medo" e a "perplexidade" do pássaro sufi que busca alcançar o significado mais profundo de Deus na experiência da proximidade (qurb). E parece, diz ele, "mais tênue do que os restos de fardos de algodão" - uma alusão à sua própria pessoa. Há este verso de Rumi: "Atire a chama do amor nesse algodão, como Hallaj, e como o povo da pureza", Mystical Poems of Rûmî, 1.1, trans. Arberry, n° 30, v. 3. (Stephane Ruspoli – Ruzbehan Tratado Espirito Santo)