SOUZENELLE, Annick de. Job sur le chemin de la lumière. Paris: A. Michel, 1999.
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A natureza do mistério na obra de Jó (hebraico Iyob)
- Abordar a figura de Jó implica o risco de acrescentar um palavreado supérfluo ao de seus três amigos visitantes, cuja compaixão não deve ser desprezada, mas cuja aproximação ao Homem de dor a partir de uma posição de saúde externa constitui uma insolência quase intolerável diante da impotência terapêutica humana perante o sofrimento, barreira que só é transposta devido à solicitação de interlocutores como Catherine Genin-Manil e Madeleine Clouet.
- A insatisfação com a literatura existente sobre o tema motiva a escrita, embora se reconheça que a presente obra trata de um mistério cujos véus se levantam sucessivamente até a entrada no segredo, o qual pertence exclusivamente ao guia divino, conforme ilustrado pelo episódio bíblico de Noé, onde a exposição da nudez mística por Ham atrai a maldição, enquanto o respeito ao mistério demonstrado por seus irmãos denota a verdadeira sabedoria.
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A constituição ontológica do ser humano como "Todo Possível Divino"
- A revelação central que emerge da reflexão é que o Homem constitui um todo possível divino, no qual Deus infinito e em perpétuo devir criador lança Sua Semente, transformando o humano em um espaço de atualização nova de Sua Glória e chamando-o a crescer para atingir uma dimensão de esposa diante do Divino.
- Esta vocação exige o engajamento em uma potência erótica situada em uma dimensão distinta da experiência amorosa comum, destinada a enriquecer o infinitamente rico através das bodas divinas, o que pressupõe a renúncia a um Deus que serve à lógica humana e ao conforto intelectual em favor de uma démarche de total não saber e vacuidade absoluta.
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A dualidade do Eu e a paternidade interior
- O guia interior revela-se como a Semente divina, a Presença YHWH, que atua como o Verbo iluminando a Bíblia inscrita na essência humana e transportando a consciência para a condição de Adam na nascente de si mesmo, o espaço sagrado anterior à Queda onde o humano se torna o foco de união entre o desejo de Deus pelo Homem e o desejo do Homem por Deus.
- A experiência interior denota a existência de duas instâncias do eu, sendo a primeira o pequeno eu, conforme a terminologia de Karlfried von Durckheim, que participa do espaço-tempo exterior, e a segunda o grande eu, o filho divino que participa do Santo Nome; paradoxalmente, o pequeno eu exerce uma paternidade sobre o grande eu análoga à de José sobre Jesus nos Evangelhos, onde o ego limitado deve trabalhar como um carpinteiro para assegurar o crescimento do Filho.
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A Árvore do Conhecimento e a ressignificação do Mal
- A Árvore do conhecimento e a Árvore da vida constituem uma única realidade onde a dualidade tradicionalmente interpretada como bem e mal deve ser compreendida como a relação entre o realizado e o inacabado na matriz do todo possível divino.
- O termo hebraico Ra, habitualmente traduzido por mal e associado etimologicamente a Aphar — pó ou fonte de fecundidade —, expressa o princípio das profundezas e o inacabado rico em potencial, de modo que sua tradução simplista gera equívocos, pois este polo representa a matéria-prima para a realização total que, quando frutificada, permite ao ser tornar-se Cristo e atingir o estado de completude.
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O papel do Adversário e o sentido do sofrimento em Jó
- A Grande Obra de realização espiritual exige o confronto com o Adversário, o Satan bíblico, pois o ser criado sob a lei da dualidade é habitado tanto por YHWH quanto por essa força opositiva de realidade ontológica, sendo que a liberdade humana reside fundamentalmente em uma liberdade de conhecimento que foi esquecida na Queda.
- A dor surge no cenário de exílio como um meio de rememorar a origem perdida, conferindo sentido ao sofrimento do justo, figura representada por Jó, que se encontra mutilado pela lei e necessita ser partejado para sua verdadeira identidade através de um processo que transcende a lógica retributiva.
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Crítica histórica e a hermenêutica do texto sagrado
- Embora existam paralelos históricos na literatura da Babilônia, como O Livro do justo sofredor e Diálogo sobre a miséria humana, e no Egito, como A Conversa do desesperado com sua alma, e a datação provável do livro de Jó se situe após o exílio na Babilônia, a aplicação radical da crítica histórica ao texto bíblico revela uma pretensão que compensa a incapacidade de atingir os níveis de consciência exigidos pela obra.
- O Verbo funda a História e não pode ser criticado por ela, exigindo uma abordagem que, tal como Moisés diante da Sarça Ardente, despoje-se de esquemas mentais pré-fabricados, permitindo que o texto de Jó se revele não apenas como um relato de dor, mas como um canto de alegria e uma grande história de amor que conduz o ser humano ao encontro do divino em si mesmo.