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id da página: 12798 Celtas – Druidas – Roux e Guyonvarc’h – Alma

Celtas Druidas Alma

GUYONVARCH, Christian-J.; LE ROUX, Françoise. Les druides. 4e éd ed. Rennes: Ouest-France, 1986.

A Imortalidade da Alma e as Concepções Errôneas da Antiguidade
  • A crença na imortalidade da alma constitui um dado maior da tradição druídica, fato mencionado unanimemente pelos autores antigos, ainda que estes a interpretassem sob uma ótica racionalizante e utilitária, confundindo a intenção doutrinária com suas consequências práticas; autores como Cesar, Lucano, Pomponius Mela, Diodoro da Sicilia e Estrabão relatam que os druidas ensinavam que as almas não pereciam, mas passavam de um corpo a outro, uma doutrina que, segundo a interpretação romana equivocada, visava primordialmente excitar a coragem dos guerreiros suprimindo o medo da morte, não obstante o fato de que a guerra na sociedade celta era um fenômeno demasiado natural e corrente para necessitar de tais artifícios psicológicos.
  • A incompreensão dos autores clássicos, derivada de um desprezo inato pelos povos considerados bárbaros, manifesta-se na confusão entre a imortalidade da alma e a prática funerária celta de queimar ou enterrar junto aos mortos objetos, animais e, outrora, até servos e clientes, bem como a troca de cartas ou mensagens destinadas aos defuntos; tais costumes, observados por Diodoro da Sicilia e Pomponius Mela, e que sobreviveram no folclore irlandês até o século XIX, possuíam um forte caráter mágico e de continuidade da vida no Outro Mundo, e não se tratava de um mero acerto de contas financeiras post mortem como ironizou Valerio Maximo ao comparar as práticas gaulesas com a filosofia de Pitagoras.
A Distinção entre Imortalidade, Metempsicose e Metamorfose
  • É imperativo estabelecer uma distinção rigorosa entre a imortalidade da alma, conceito universal nas religiões, e a metempsicose, entendida estritamente como a passagem de elementos psíquicos de um corpo para outro, sendo forçoso constatar que a metempsicose, tal como formulada na doutrina pitagórica ou nas religiões da Índia onde todos os seres animados estão sujeitos a ela, está ausente do mundo celta em termos gerais; textos como o Kat Godeu (Combate dos Arbustos) atribuído a Taliesin, ou os cantos de Amorgen, que parecem sugerir reencarnações sucessivas em formas variadas, traduzem, na realidade, uma aplicação celta da noção metafísica dos estados múltiplos do ser e não uma transmigração da alma em série de corpos materiais.
  • Os raros exemplos de metempsicose presentes na literatura irlandesa, como a lenda de Tuan mac Cairill, que viveu sob formas de homem, boi, porco, falcão e salmão ao longo de séculos, demonstram que a mudança de forma é um destino reservado a personagens míticos excepcionais, predestinados e "missionados" para transmitir a ciência e a história primordial, não constituindo uma lei geral aplicável ao comum dos mortais; diferentemente do sistema indiano, a metempsicose celta é restrita e funcional, operando como veículo para a preservação da memória ancestral através das eras.
  • As narrativas de metamorfose, frequentes nos textos galeses e irlandeses, distinguem-se fundamentalmente da metempsicose por serem transformações temporárias, muitas vezes punitivas ou resultantes de combates mágicos, onde a personalidade original é mantida intacta sob a aparência animal, como evidenciado no conto dos dois querreiros transformados em corvos e outros animais, ou na perseguição de Gwion Bach pela feiticeira Ceridwen; nestes casos, a forma humana é eventualmente recuperada, o que indica que tais episódios refletem antigas técnicas rituais e mágicas de alto nível, ou a instabilidade morfológica dos seres divinos, sem qualquer relação com a doutrina escatológica da imortalidade da alma.
  • Exemplos notáveis de metamorfose incluem a lenda das sacerdotisas da ilha de Sena relatada por Pomponius Mela e a figura de Morgana na Vita Merlini de Geoffrey de Monmouth, ambas capazes de assumir formas animais à vontade, bem como as transformações de Etain em água, verme, mosca e novamente mulher, ou os sobrinhos do rei Math punidos com formas animais; em todos estes relatos, a metamorfose é um acidente que interrompe o curso normal da existência ou uma demonstração de poder sobrenatural, jamais implicando uma evolução ou purificação da alma através de existências sucessivas, refutando assim as interpretações modernas que buscam ver nestes mitos provas de reencarnação ou xamanismo.
O Outro Mundo e a Concepção do Sid
  • A escatologia celta concebe o Além não como um local de retribuição moral, mas como um Outro Mundo (Sid), localizado geralmente em ilhas a oeste ou no interior de colinas e túmulos, um lugar de paz, eterna juventude, abundância e prazer, denominado Tir na nOg (Terra dos Jovens) ou Mag Mor (Grande Planície); este paraíso, acessível por vezes aos vivos através de convites de mulheres do Sid ou de viagens aventurosas, caracteriza-se pela abolição do tempo e do espaço humanos, onde séculos transcorrem como momentos e onde não existem doenças, velhice ou morte, assemelhando-se curiosamente às descrições do paraíso islâmico.
  • A natureza do Sid é essencialmente a de uma perfeição estática e feliz, onde as distinções funcionais da sociedade humana (sacerdotes, guerreiros, produtores) são abolidas ou tornam-se desnecessárias, predominando os aspectos de prazer e abundância associados à terceira função indo-europeia; a morte para os celtas não era o fim, mas o meio de uma longa vida, uma transição para uma existência continuada em um mundo paralelo que coexiste com o humano, mas que opera em uma dimensão temporal distinta, a eternidade.
  • A interação entre o tempo humano e o tempo do Sid é marcada por uma barreira intransponível, dramaticamente ilustrada na Navegação de Bran, onde o retorno ao mundo dos mortais causa o envelhecimento instantâneo e a transformação em cinzas daqueles que, tendo vivido séculos na terra das mulheres, tocam novamente o solo da Irlanda, ou na lenda de Condla, que, seduzido por uma mulher imortal, abandona definitivamente seu povo e sua realeza; esta concepção explica a irrelevância da morte para os guerreiros celtas e a ausência de medo relatada pelos clássicos, pois a vida prossegue em condições ideais sem o julgamento de pecados ou a ameaça de um inferno, conceito este estranho ao paganismo celta e introduzido apenas tardiamente pelo cristianismo.
Manifestações do Outro Mundo: Pássaros e Música
  • Os habitantes do Outro Mundo, especialmente as mulheres mensageiras, frequentemente se manifestam sob a forma de pássaros, notadamente cisnes, muitas vezes unidos por correntes de ouro ou prata, cuja função primordial é cantar uma música divina que adormece os mortais, cura doenças e suspende a percepção da dor e do tempo; exemplos abundam na literatura, como no caso de Cuchulainn e as mulheres do Sid transformadas em aves, ou na lenda dos Filhos de Lir, onde a transformação em cisnes, embora punitiva, confere às crianças a capacidade de cantar a música do Sid e viver por séculos, preservando sua razão e nobreza.
  • A música desempenha um papel central como manifestação do divino e técnica de alteração de consciência, sendo a harpa do deus Dagda capaz de executar os três refrões fundamentais (do riso, do choro e do sono) que controlam as emoções e a vontade dos seres; a excelência musical é um atributo dos deuses e dos druidas, e a execução de melodias mágicas permite a transição entre os mundos ou a manipulação do tempo, reafirmando que todo aquele que possui uma arte técnica ou intelectual na sociedade celta é elevado a uma categoria quase divina.
A Estrutura do Tempo e do Espaço no Pensamento Druídico
  • O deus-druida Dagda é o senhor da eternidade e dos elementos, capaz de manipular o tempo cronológico, fazendo com que nove meses se passem como um único dia para ocultar o nascimento de seu filho Oengus, ou utilizando a fórmula jurídica de "um dia e uma noite" para representar a totalidade do tempo e assim garantir a posse definitiva de uma residência; esta relatividade temporal é uma característica intrínseca do Sid, onde a duração é qualitativa e não quantitativa, e onde a eternidade é o estado natural, em contraste com a finitude da existência humana.
  • Espacialmente, o Outro Mundo possui a propriedade da ubiquidade e não se submete às leis da física material, permitindo que seus habitantes atravessem barreiras sólidas ou transportem pessoas através de orifícios de fumaça, e que residências magníficas surjam do nada para abrigar heróis perdidos, desaparecendo logo em seguida; a própria geografia mítica da Irlanda, com seus túmulos e colinas identificados como moradas divinas, serve como pontos de contato ou omphaloi entre as dimensões, onde a realidade divina pode irromper no mundo profano.
O Sistema de Orientação e os Pontos Cardeais
  • A orientação ritual e geográfica dos celtas baseia-se na posição do observador voltado para o sol nascente (leste), determinando que o sul (dehou em bretão, dess em irlandês antigo) corresponda à direita e seja associado ao que é benéfico, claro e feliz, enquanto o norte (gogledd, tuaith) corresponde à esquerda e vincula-se ao oculto, ao mágico, ao maléfico e à guerra; esta concepção reflete-se na etimologia, onde a palavra para "norte" e "esquerda" frequentemente carrega conotações de hostilidade ou sobrenaturalidade, e na prática da dextratio (movimento no sentido solar) como geradora de bênçãos e ordem, em oposição ao movimento para a esquerda (tuaith) que é usado para desafios, maldições ou agressão.
  • A divisão do espaço e as ações rituais são regidas por este simbolismo solar, como exemplificado pelo cocheiro de Cuchulainn que realiza voltas à direita para conjurar o mal, ou pelo próprio herói que apresenta o lado esquerdo do carro de combate em sinal de desafio e morte; a sobrevivência deste sistema é atestada até mesmo na hagiografia cristã, com São Patricio cometendo o "erro" de golpear o ídolo Crom Cruach pelo lado esquerdo, o que, ironicamente, apenas o afunda na terra em vez de destruí-lo, e na divisão teórica da Irlanda onde cada província e ponto cardeal possui atributos específicos (ciência a oeste, batalha ao norte, prosperidade a leste, música ao sul e soberania no centro).
  • A origem deste conhecimento e da própria classe druídica perde-se na antiguidade indo-europeia, sendo os druidas comparados por Diogenes Laercio aos Magos persas, aos Caldeus babilônicos e aos Gimnosofistas indianos, sugerindo uma raiz comum ou um paralelismo estrutural profundo nas tradições sacerdotais arcaicas, muito anterior à construção dos megálitos, os quais os celtas não erigiram mas reutilizaram dentro de sua própria geografia sagrada.