BONARDEL, Françoise. Philosophie de l’alchimie: grand œuvre et modernité. Paris: PUF, 1993.
Perspectivas sobre a Natureza, a Arte Hermética e a Tensão com o Cristianismo
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A manifestação da aptidão da Natureza em integrar as sombras e permanecer potência de sombreamento agudiza o problema do estatuto da Arte hermética, a qual é constantemente suspeita de pretender o título de sabedoria plena à imagem da fecundidade conjunta da Natureza e da Arte, tal como um tratado atribui ao sábio a capacidade de trazer nos braços o céu com a terra, abraçando-os com o espírito vivo, conhecendo o presente, evocando o passado e apercebendo o futuro. A descoberta da Quinta-Essência, considerada pelos alquimistas como a raiz da vida e finalidade da Obra, suscita a interrogação sobre se esta favorece a compreensão do mistério da Trindade formulada no Ocidente como Pai, Filho e Espírito Santo ou se, ao autonomizar-se, interdita a manifestação sempre sobrenatural numa alma e num espírito adquiridos à sua sabedoria. Jung considerou que na alquimia encontra-se oculta uma meditação ou uma espécie de ioga secreto dissimulado com o maior cuidado por temor à heresia e às suas consequências duvidosas, parecendo de fato que um cristianismo desconfiado de toda magia natural e cortado das realidades ctônicas apenas aprofunda o fosso entre alquimia e teologia, separando as luzes natural e divina que Paracelso lutou desde o século XVI para manter associadas.
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A crítica do cristianismo não implica necessariamente a concessão de confiança à alquimia, como observa A. W. Schlegel ao deplorar o aniquilamento do sentimento da natureza pelo cristianismo, mas concluindo que nos escritos dos teósofos existem grãos de ouro misturados a uma liga tão estranha que a pretensão de fazer passar tudo por ouro puro assemelha-se aos prestígios dos alquimistas. Inversamente, Jung, na condição de herdeiro espiritual de Schleiermacher, vislumbra na alquimia o corretivo vindo para restabelecer a parte da sombra no seio mesmo do cristianismo, o que constitui um compromisso onde M. Aniane observa que sem a alquimia o cristianismo não poderia ter encarnado numa ordem total, enquanto reciprocamente a alquimia não poderia ter sobrevivido no Ocidente sem a prodigiosa efusão iniciática do cristianismo.
A Visão Teosófica e a Racionalização de Saint-Martin
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Define-se como teósofo aquele que parte de uma visão para compreender a Natureza, sendo exemplares neste sentido Saint-Martin, Baader ou Eckartshausen, este último afirmando que somente a posse do Espírito universal, isto é, do Espírito de Cristo no interior, permite aprender a conhecer o exterior do espírito universal da natureza melhor do que o faz a filosofia comum. A posição de Saint-Martin é significativa ao reconhecer a validade da Arte hermética apenas se esta permanecer subordinada a uma alquimia espiritual que lhe transponha e purifique os símbolos e esquemas, mantendo-se a suspeita de culto das substâncias corruptíveis caso seus praticantes busquem com ardor um espírito que seja matéria apenas para dispensar aquele que não o é.
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Embora Saint-Martin não rompa com a visão de uma Natureza globalmente alquimista, onde todos os corpos tendem a despojar-se de suas cascas grosseiras para devolver ao Principio que os anima o brilho intrínseco, ele insiste que a verdadeira Grande Obra reside no reconhecimento do Principio divino, cujo amor oferece aos homens o conhecimento das leis secretas da Natureza apenas para ajudá-los a reconhecer os traços do modelo vivo perdido de vista. Esta prioridade tende a ser esquecida pelos filósofos herméticos que aproveitam a semelhança aparente entre Natureza e Sobrenatureza para autonomizar a sua Arte e remitologizar a Criação, reconhecendo a luz natural como apta a transfigurar as formas visíveis sem que ela mesma seja iluminada e orientada pela luz divina, um debate que remonta aos argumentos de santo Agostinho sobre o culto das imagens no Esculápio atribuído a Hermes Trismegisto. Ao reconhecer na terra o ponto de reunião de todas as virtudes criadas e o cadinho das almas e dos corpos, Saint-Martin tende a racionalizar a visão alquímica da Natureza, postulando que as transmutações ocorrem porque os diferentes germes inatos em cada corpo se separam para agir segundo a sua lei sem sair do seu reino, o que torna obscura a compreensão de como uma dinâmica comum de transmutação poderia inflamar a Natureza inteira e elevá-la até Deus, momento em que a ciência se preparava para demonstrar a impossibilidade das transmutações e a teosofia para ocultar a potência transmutante de uma visão conatural às duas luzes em favor de um retorno à teologia.
O Misticismo Naturalista de Baader e a Corporificação
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A possibilidade de um equilíbrio entre Natureza e Sobrenatureza realizado graças à alquimia parece mais sutilmente mantida em Baader, que subscreve às vistas da teosofia ao questionar se a Natureza é outra coisa senão a serva do Senhor, o vestuário e o reverso da divindade, constituindo o grande Todo um poema e uma epopeia da informação da divindade. Enquanto anti-hegeliano que recusa separar a realização do Espirito do acabamento da Natureza por corporização espiritual, Baader afirma a vontade de quebrar as cadeias de chumbo com que a visão mecanicista carregou o espírito, desenvolvendo um misticismo naturalista sob a influência magistral de Boehme onde domina o desejo de reencontrar uma relação confiante e justa com a Natureza, corrompida desde a origem pela Queda. Esta relação não deve ser um simulacro de harmonia poética, nem uma exploração maligna ou um abandono cego a afinidades eletivas, mas sim, como insiste Baader, uma libertação da maldição e uma evolução da bênção na natureza exterior que constitui não uma brincadeira, mas um dever da parte do homem, em consonância com a afirmação posterior de Milosz de que a Grande Arte é de todas as atividades humanas a única razoável e natural.
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O alquimista e poeta deve reaprender a tornar-se o homem crente, reanimando em seu coração o amor da Natureza simultaneamente ao de Deus, pois toda a atividade do espírito humano não tem outro fim senão extrair do universo sensível uma forma espiritual. Fiel à visão hermetista que faz do homem o centro, a quintessência e o ideal do mundo criado, Baader enfatiza a responsabilidade humana perante a Natureza, fundamentada numa concepção de um ternário criador herdado da alquimia via Boehme, onde o Naturcentrum é a oficina secreta da manifestação. Três princípios são potencialmente coautores do manifestado — o Ungrund, o abismo original sem fundo, pode tornar-se Grund, fundamento, pela mediação de um Naturcentrum — desde que o homem consiga arrancar-se a si mesmo dessa primeira e natural roda de angústia que faz dele um Tântalo ou um Ixion, pois é somente atravessando e triunfando sobre esse conflito e contradição que a vida se libera da angústia do nascimento e se apropria das forças de manifestação.
A Dinâmica Raiz-Caule e a Função de Orfeu
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Recusando tanto o materialismo quanto o espiritualismo, bem como a potência mágica obscura do Ungrund e a independência ilusória de um Espírito que se crê dispensado de tomar substância, Baader desenvolve uma concepção da corporificação que integra os ensinamentos da alquimia e do cristianismo, afirmando que a metafísica necessita do físico para se realizar e o físico necessita do metafísico para se sustentar, conforme observa E. Susini. Nota-se a permutação sem a qual não há transmutação, pois a verdadeira sustentação — comparável ao papel do caule para a planta — não é de ordem natural mas espiritual, de modo que Deus sustenta continuamente toda vida criatural cujo enraizamento terrestre oferece reciprocamente a todo elã espiritual a chance de uma encarnação.
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Diferentemente de Hegel, onde a dialética encontrava seu dinamismo natural na metáfora do germe tornando-se flor e fruto numa dinâmica lateral que oblitera a verticalidade da relação Céu-Terra, a equilibração buscada por Baader entre Natureza e Sobrenatureza encontra na parábola da raiz e do caule sua expressão mais justa, substituindo a triangularidade hegeliana de Alma, Natureza e Espírito absoluto por uma relação quadrangular entre Deus, Homem, Espírito e Natureza. Dois tropismos diferentes fazem o homem voltar-se, como uma planta, tanto para a sua implantação obscura quanto para a luz solar símbolo do divino, sendo que a confusão destes dois elãs entravaria a libertação de toda Natureza, cujo acesso ao espiritual concreto necessita do reconhecimento do caráter vital de todo enraizamento. O alquimista deve buscar inverter o movimento tantalizante e perverso do homem separado de Deus que apenas separa confundindo em vez de distinguir unindo, exigindo o pensamento de Baader um ajuste sutil entre os diferentes centros chamados a operar conjuntamente: Deus, Naturcentrum e o sentido interior revelado ao homem. O relatório simbólico raiz-caule-sol posto em obra por todo verdadeiro poeta, figurado em Orfeu, é filosoficamente mais importante que a passagem do oculto ao revelado, pois permite a todo centro natural tornar-se foco de irradiação e vivificação, de modo que onde Ixion contamina a Criação, Orfeu encontra a justa vibração que faz do enraizamento também uma elevação.
Poética, Religião da Terra e a Necessidade da Matéria Prima
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A resultante de toda verdadeira poesia deveria ser uma força que transforma o natural em sobrenatural, buscando acordos supremos entre a potência do canto e uma tendência final de glorificação, segundo P. J. Jouve, que permanece próximo do esquema teosófico e baaderiano. Permanece a questão se devem ser consideradas alquimias aquelas poéticas que, valorizando apenas o poder de auto-elevação ou transmutação de uma Terra-Natureza, parecem favorecer o renascimento das religiões da Terra, em relação às quais Baader mantinha as mesmas reticências que Saint-Martin.
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Na perspectiva de Baader, toda religião da Terra introduz uma confusão entre a terra-matéria hipostasiada em finalidade da Obra e uma outra terra na qual ele vê o baluarte contra o fogo devorador que é todo espírito desencarnado e o local onde se fixa e detém a corrupção da terra. Há lugar para indagar se a recondução à Terra, pela qual numerosas alquimias poéticas contemporâneas circunscrevem o trajeto do que nomeiam Obra, faz cegamente a economia de uma Sobrenatureza, ou se a limitação do projeto é o sinal de uma urgência de outra natureza, a de pesquisar prioritariamente e consolidar a terra como materia prima e condição de possibilidade da Obra, tal como Artaud dirá que antes de lançar as consciências do alto do céu é preciso descer ao inferno para preparar a terra acima de si e sustentar a terra do inferno.