EVANGELHO DE JESUS: Sinal de Abraão; Eu Sou
- ...e não queirais dizer dentro de vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. (Mt 3,9)
- Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento; e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos por pai a Abrão; porque eu vos digo que até destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abrão. (Lc 3,8)
- Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não entra em juízo, mas já passou da morte para a vida. (Jo 5,24)
Roberto Pla
A bem-aventurança é o estado próprio do que descobre seu ser real, eterno, e chega depois a fazer-se Uno com ele. Deste, do Filho do homem, é de quem um nascido de mulher, o que foi reputado como o maior deles, disse como testemunho: "João deu testemunho dele, e clamou, dizendo: Este é aquele de quem eu disse: O que vem depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim ele já existia" (Jo 1,15). Com este reconhecimento textual já pode qualquer discípulo de Jesus chegar a entender que ele "já era antes de ter nascido" ou, o que é o mesmo, que o homem pneumático, em Cristo, é ingênito, isento de mudança, e que nunca teve para ele nascimento, nem terá possibilidade de morte.
Quanto as pedras se tornarem servidoras, se diz que todo aquele que uma vez culmina sua metanoia batismal, a do fogo purificador do Espírito, recebe como alimento de todos os dias e horas o pão de Deus, segundo se descreve na perícope evangélica do deserto: "Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. Chegando, então, o tentador, disse-lhe: Se tu és Filho de Deus manda que estas pedras se tornem em pães. Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus." (Mt 4,1-4) (vide Tentações de Cristo)
Nada disso é difícil de chegar a um entendimento superficial, intelectivo; mas ainda dentro desse entendimento, a dificuldade aparece quando o logion diz que cada homem tem cinco árvores no Paraíso, que há que reconhecer (entenda-se experimentar), para alcançar a vida eterna.
A interpretação de Roberto Pla prossegue se valendo de duas explicações importantes:
Emille Gillabert
Este logion parece ser a continuação do precedente. O gnóstico sabe, com uma certeza que ele infelizmente não pode partilhar com o psíquico, que ele é desde sempre. “Antes que Abraão existisse, eu SOU”, diz Jesus. Não se pode ser discípulo de Jesus se não se fizer sua esta afirmação espontânea que Jesus exprime aqui por: “Feliz aquele que já era antes de existir.” O inengendrado está na origem do criado e o gnóstico é anterior a um e ao outro. O desdobramento da manifestação é sua obra até nos mínimos detalhes. Não há nem mesmo as pedras que não falem de sua origem. Nisargadatta diz do jnani (gnóstico) que nem uma folha se move sem ele. Como o manifestado é gerado pelo não-manifestado, assim os sentidos (a visão, a audição, o olfato, o paladar, o tato) têm cada um seu correspondente ao nível da possibilidade infinita. Cada sentido funciona segundo seu arquétipo imutável, de tal forma que se se age em conformidade com o que se é essencialmente, se exprime não somente a gênese do criado e o próprio criado, mas o retorno deste à Fonte, passando pelos arquétipos imutáveis simbolizados aqui pelas árvores que não são tributárias das estações. Esta compreensão da energia cujos movimentos de expansão e de reabsorção são à imagem da expiração e da inspiração será facilitada quando se abordar o logion 77 que a exprime admiravelmente: “... Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim, e o Todo chegou a mim. Partam a lenha, eu estou lá...” Mas se antecipa apenas o suficiente para melhor compreender e melhor assumir a função que foi atribuída no logion 3, função que se aceita com tudo o que isso comporta. O título que foi concedido não é honorífico, mas ligado à sua função correspondente. Que aquele que tem ouvidos ouça!
Não se encontra rastro deste logion nos evangelhos canônicos; ainda mais desconcertante do que o precedente, ele foi simplesmente afastado. Em contrapartida, lê-se no Evangelho de Filipe: “O Senhor disse: Bem-aventurado aquele que é antes de se ter tornado. Pois é ele que é, era e será.”
Jean-Yves Leloup
É preciso ser antes de existir... Segundo sua própria etimologia, o verbo existir indica que ele ex-prime a essência, a manifesta. Poderíamos igualmente aproximar deste logion esta palavra bem conhecida de Jesus e que lhe valeu ser crucificado: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou”; antes de entrar no espaço-tempo, antes de Abraão, antes de toda existência, “Eu Sou” e este é o Nome Divino, a afirmação do Incriado.
Mestre Eckhart retomará para si esta palavra de Jesus: “Antes de nascer, eu sou de toda a eternidade.” Feliz aquele que, no espaço-tempo, toma consciência de seu Ser de eternidade. “Ele está no mundo, mas não é deste mundo” e então, “as próprias pedras o servirão”.
Quando se está em harmonia com o princípio incriado de tudo o que existe, todas as coisas parecem então “servi-lo”. Há um apoio real de todos os elementos da natureza. O gnóstico está então no “paraíso”.
“O paraíso, dizia Kafka, ele está sempre lá... somos nós que somos expulsos dele.” Para reencontrá-lo, é preciso conhecer “as cinco árvores que não mudam nem no verão nem no inverno”.
O Evangelho de Filipe vê nestas cinco árvores os cinco sacramentos (sent. 68). Jean Doresse, depois de ter citado o saltério maniqueísta, menciona o tratado maniqueísta chinês de Chavannes Pelliot e sua longa passagem consagrada à “plantação” pelo Enviado da Luz das cinco árvores preciosas. A primeira delas é a Árvore do Pensamento, a segunda a Árvore do Sentimento, a terceira a da Reflexão, a quarta a do Intelecto e a quinta a do Raciocínio.
Outros verão nestas “cinco árvores” o esboço da teoria dos cinco sentidos espirituais, desenvolvida por Orígenes e a Tradição patrística.
Para reencontrar o Sentido do paraíso, é preciso de fato ter “olhos para ver” através do visível, descobrir o invisível; “ouvidos para ouvir” através do som ou das palavras, discernir o canto do silêncio, etc.
Os gnósticos praticavam a “aplicação dos cinco sentidos”, este exercício que — através da aplicação metódica dos órgãos dos sentidos sobre um objeto — nos conduz a esta “sensação do Divino”, um prelúdio à grande apocalipse ou Revelação do Ser no microcosmo humano?
Philippe de Suarez
Nesse logion, como no anterior, Jesus nos convida a voltar à nossa origem: feliz é aquele que já era antes de existir, aquele que foi além do mundo das aparências ao qual o nascimento e a morte estão ligados. Os dois logia têm a mesma conclusão: ele não provará a morte. A transposição para o nível do evento mencionada acima explica por que esse logion, ainda mais embaraçoso do que o anterior, não deixou vestígios nas redações finais dos Evangelhos canônicos.