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Ser Amor

Hermetismo Cristão

Meditações Tarô

Não experimentas também tu, caro Amigo Desconhecido, um sentimento de mal-estar cada vez que encontras uma das fórmulas que enunciam os atributos superiores das Pessoas da Santíssima Trindade, tais como: "Poder, Sabedoria, Amor" ou "Ser, Consciência, Beatitude" (Sat-Chit-Ananda)? Esse mal-estar eu o senti sempre, e foi só mais tarde, muito mais tarde, que compreendi a sua causa. É por ser amor que Deus não admite nenhuma comparação e que ele excede tudo — o poder, a sabedoria e até o ser. Podemos falar, se quisermos, do "poder do amor", da "sabedoria do amor" e da "vida do amor" para fazermos distinção entre as três Pessoas da Sanctissima Trinitas, mas não podemos colocar no mesmo plano, de um lado, o amor e, do outro, a sabedoria, o poder e o ser. Porque Deus é amor, e é o amor, só o amor, que, por sua presença, atribui valor ao poder, à sabedoria e ao próprio ser. Porque o ser sem amor é desprovido de todo valor. Ser sem amor seria a pena mais terrível — o próprio inferno!

O amor ultrapassa então o ser? Como duvidar disso depois da revelação dessa verdade, feita há dezenove séculos, pelo Mistério do Calvário? "O que está em baixo é como o que está em cima" — e o sacrifício por amor que o Deus Encarnado fez de sua vida, de seu ser terrestre, não é a demonstração da superioridade do amor sobre o ser? E a Ressurreição não é a demonstração do outro aspecto do primado do amor sobre o ser, a saber, que o amor não só é superior ao ser, mas também que o gera e o restabelece?

O problema do primado do ser ou do amor remonta à antiguidade. Platão o lembrou ao dizer:

"Confessarás, penso, que o Sol dá às coisas visíveis não só o poder de serem vistas, mas também a geração, o crescimento e a nutrição, sem ser ele mesmo geração. . . Confessa também que as coisas inteligíveis recebem do bem não só sua inteligibilidade, mas também seu ser e sua essência, porque, embora o bem não seja essência, está muito acima dela em dignidade e poder" (República, 509 B).


E sete séculos mais tarde, Salústio, amigo do imperador Juliano, escreveu:

"Se a Causa primeira fosse alma, tudo seria animado; se ela fosse inteligência, tudo seria inteligente; se ela fosse ser, tudo deveria participar do ser. Ora, como alguns notaram que toda coisa participa do ser, pensaram que o ser era a causa primeira. Se, pois, os seres fossem apenas seres e não fossem bons, a sua asserção poderia ser verdadeira. Mas se os seres só existem pela bondade e se participam do bem, torna-se necessário que o primeiro princípio seja superior ao ser e que seja bom por si mesmo. Eis a maior das provas. Com efeito, as almas generosas, por causa do bem, desprezam continuar no ser, quando escolhem expor-se ao perigo por sua pátria, por seus amigos e pela virtude" (Dos deuses e do mundo, cap. V).


O primado do Bem (sendo o "Bem" a noção filosófica abstrata da realidade do amor) em relação ao ser foi tratado também por Plotino (Enéades, VI, 7, 23, 24), por Proclo (Teologia de Platão, II, 4) e por Dionísio Areopagita (Nomes divinos, 4). São Boaventura (In Hexaemeron, X, 10) tentou conciliar o primado platônico do Bem com o primado mosaico do Ser: Ego sum qui sum (Ex 3,14), afirmado primeiro por João Damasceno, e depois por santo Tomás de Aquino. Este declara que entre todos os nomes divinos há um que é eminentemente próprio de Deus, a saber, Que é, justamente porque este nome significa somente o ser como tal. Etienne Gilson, concordando com santo Tomás, João Damasceno e Moisés, escreve que o ser é "o princípio de uma fecundidade metafísica inesgotável. . . Há um só Deus, e esse Deus é o ser; essa é a pedra angular da filosofia cristã, e não foi Platão, nem Aristóteles quem a colocou, mas Moisés" (L'esprit de la philosophie médiévale, Vrin, Paris, 1948, cap. III, p. 51).

Qual é então o alcance da adoção do primado do ser sobre o do bem ou, segundo são João, sobre o do amor?

A noção do ser é neutra do ponto de vista moral. Para se chegar a ela não é necessário ter experiência do Bem e do Belo. A experiência do reino mineral, por si mesma, já seria suficiente para se chegar à noção moralmente neutra do ser. Porque o mineral é ser. Por isso a noção de ser é objetiva, isto é, postula, em última análise, a coisa subjacente em todas as coisas, a substância permanente por trás de todos os fenômenos.

Convido-te, caro Amigo Desconhecido, a fechar os olhos e a examinar com exatidão a imagem que acompanha essa noção em tua imaginação intelectual. Não encontrarás a vaga imagem de' uma substância sem cor nem forma e muito parecida com a água do mar?

Mas, seja qual for a tua representação subjetiva do ser como tal, a noção de ser é moralmente indiferente e, por consequência, essencialmente naturalista. Ela implica algo de passivo — um dado ou um fato imutável. Em compensação, quando pensas no amor, no sentido joanino, ou na ideia platônica do bem, encontras-te em face da atividade essencial, a qual não é neutra, do ponto de vista da vida moral, mas é o coração dessa vida. E a imagem que acompanha essa noção de pura atualidade será a do fogo ou a do sol (Platão compara a ideia do Bem com o Sol, e a sua luz com a verdade), em lugar da imagem de um liquido indeterminado.

A esse respeito, Tales e Heráclito têm concepções diferentes. Um via a essência das coisas na água, o outro a via no fogo. Isso, antes de tudo, porque a ideia do Bem e de seu ponto culminante — o Amor — se deve à concepção do mundo como processo moral, enquanto a ideia do Ser e de seu ápice — o Deus que é — se deve à concepção do mundo como fato natural. A ideia do Bem (e do Amor) é essencialmente subjetiva. É absolutamente necessário ter a experiência da vida psíquica e espiritual para se ter condição de concebê-la, enquanto que — como já dissemos — a ideia do ser, sendo essencialmente objetiva, apenas pressupõe certo grau de experiência externa, do mundo mineral, por exemplo.

A consequência da escolha entre esses dois pontos de vista, melhor, entre essas duas atitudes da alma, consiste sobretudo em que o caráter da experiência da mística prática delas resultante procede dessa escolha. Quem escolher o Ser aspirará ao ser verdadeiro, e quem escolher o Amor aspirará ao Amor. Ora, só encontramos o que procuramos. Quem procura o ser verdadeiro chegará à experiência do repouso no ser, e, como não podem existir dois seres verdadeiros ("o binário ilegítimo" de Saint-Martin) ou duas substâncias coeternas separadas, mas somente um ser e uma substância, suprimir-se-á o centro do "ser falso", a Ahamkara ou a ilusão da existência separada da substância separada do "eu". A característica dessa via mística é que se perde a capacidade de chorar. Um discípulo avançado da Ioga ou do Vedanta tem os olhos secos para sempre, ao passo que os Mestres da Cabala, segundo o Zohar, choram muito e frequentemente. Também a mística cristã fala do " dom das lágrimas" como de dom precioso da Gratia divina. O Mestre chorou diante do túmulo de Lázaro. Assim, a característica externa daqueles que escolhem a outra via mística, a do Deus do Amor, é que eles têm o "dom das lágrimas". Isso provém da essência de sua experiência mística. A sua união com o Divino não é absorção de seu ser pelo Ser Divino, mas experiência do Sopro do Amor Divino, da Iluminação pelo Amor Divino e do Calor do Amor Divino, e a alma do recipiendário experimenta algo tão miraculoso que. . . chora. Nessa experiência mística o fogo se encontra com o fogo. Nada se extingue então na personalidade humana, mas, ao contrário, tudo nela se abrasa. É a experiência do "binário legítimo" ou a união de duas substâncias separadas na essência única. As substâncias continuam separadas para não serem privadas daquilo que é o mais precioso em toda existência: a aliança livre no amor.