VIDE: abaixo acima, homem exterior interior, centro, vacuidade, visível-invisível, interioridade
Forma e substância nas religiões
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A existência concreta do sufi vivida sob o olhar simultâneo de Al-Awwal, Al-Akhir, Az-Zahir e Al-Batin.
- A habitação consciente destas dimensões metafísicas de modo análogo ao movimento das criaturas ordinárias no espaço e no tempo.
- A auto-compreensão do sufi como o ponto de interseção consciente onde as dimensões divinas se encontram.
- O seu engajamento rigoroso no drama universal, sem ilusões sobre escapatórias impossíveis.
- A rejeição da falaciosa « exterioridade » dos profanos, os quais imaginam poder viver fora da única realidade espiritual verdadeira.
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A relação intrínseca e indelével do mundo com Deus, independentemente dos seus conteúdos permanentes ou transitórios.
- A conceituação do mundo como uma substância celeste caída no nada e endurecida pelo frio do afastamento.
- O testemunho das limitações das coisas e das calamidades resultantes sobre esta condição decaída.
- A percepção do sábio, que vê nas coisas a origem divina tornada distante e discerne nelas o ponto de queda inevitável onde o mundo finalmente se despedaçará.
- O discernimento, nos fenômenos, do fluxo e do refluxo, da expansão e do retorno, do milagre existencial e do limite ontológico.
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A percepção suprema do sufi através do « olho do coração » de que « toda a coisa é Ele ».
- A distinção crucial entre o mundo, que não é Deus sob o aspecto da sua existência particular, e o mundo como « O Aparente » sob o aspecto da sua possibilidade profunda.
- A dependência do mundo de um milagre permanente, sem o qual ele desabaria no nada.
- O paradoxo insondável: num sentido, o mundo não é Deus; noutro sentido, ele « não é outro senão Ele » em virtude da sua causalidade divina.
- A insuficiência das palavras para dar conta deste mistério, resumido na alternativa radical: num certo ponto, o mundo « é Deus », ou não é.
- A impossibilidade de falar de « O Aparente » sem falar de « O Interno », pois a verdade do primeiro depende intrinsecamente do segundo.
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A condição humana universal de suspensão entre « O Primeiro » e « O Derradeiro ».
- A queda do estado primordial e a ameaça constante da morte que define a existência de todo homem.
- A presença da Lei divina, que o precede, atrás de si, e do Juízo, que o aguarda, diante de si.
- Deus como « O Primeiro » não apenas na qualidade de Criador, mas também de Legislador.
- A extensão ontológica do homem, da sua forma corpórea – « feita à imagem de Deus » – através da alma e do espírito até ao Ser e ao Si mesmo.
- A constituição do homem como um ser tecido no « Aparente » e que desemboca no « Interno », devido à parcela divina ilimitada que nele reside.
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A dupla natureza da existência humana sob as perspectivas da sucessão e da simultaneidade.
- O homem como um fluxo emanado do « Primeiro » na sucessão.
- O homem como uma coagulação veiculada pelo « Aparente » na simultaneidade.
- A exigência de que o fluxo humano carregue em si o sentimento da sua relatividade e a vontade do refluxo – o movimento em direção a « O Derradeiro » – sob pena de a condição ser animal e não humana.
- A exigência de que a coagulação individual carregue em si a consciência de « O Interno », sendo a razão suficiente do homem a « manifestação do Não-Manifesto » e não a mera manifestação.
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A posição relativa de « O Aparente » e « O Interno » no esquema cosmológico.
- « O Aparente » situado entre « O Primeiro » e « O Derradeiro ».
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O fundamento do drama escatológico humano na necessidade de retorno ao « Derradeiro » daquilo que provém do « Primeiro ».
- A definição do homem como uma « mensagem de Deus a Deus », segundo a expressão dos sufis.
- A exigência de que este percurso seja realizado livremente, pois a razão de ser da natureza humana é a manifestação plena da liberdade.
- A natureza paradoxal da liberdade como uma espada de dois gumes, que, sendo uma possibilidade, não pode deixar de se realizar, tornando o homem necessário.
- A inclusão, na liberdade, da eventualidade do absurdo: o desejo de ser si mesmo « O Primeiro » de onde se vem e « O Derradeiro » para onde se vai.
- A ilusão fundamental deste desejo, que ignora que a existência provém de uma vontade alheia e que o homem é incapaz de criar a partir do nada ou de aniquilar.
A distinção interior-exterior é uma distinção humana e o o olhar de Deus envelopa o homem e «põe a nu» seu coração: «Onde iria longe de teu espírito, onde fugiria longe de tua face?»
Enfim é Deus que revelará o coração do homem.
Porque «nada está oculto» a seus olhos, Deus só pode «manifestar» o «segredo dos corações» e a ele só pertence o julgamento. A passagem do «oculto» ao «manifestado» procede de Deus e não do homem pois esta manifestação do «segredo dos corações» se fará pela manifestação de sua glória. [Ysabel de Andia: Mystiques d'orient et d'occident]
A distinção entre o que, exterior ao homem lhe é estranho, e, por outro lado, o "coração" onde o homem se experimenta ele mesmo, ele e tudo mais que ele experimenta — suas afecções, seus desejos e tudo mais que relata o dito de Jesus O MAL DE DENTRO —, uma tal distinção, tão importante seja ela, não nos permite de modo algum nos elevar acima da ordem humana: ela serve ao contrário a defini-la. Trata-se de uma ordem que não é aquela das coisas mas da vida que se experimenta ela mesma com seus sofrimentos, seu caprichos maus ou sua imensa alegria de viver. [Michel Henry: Michel Henry Palavras do Cristo]
Al-Qashani reproduz esta passagem de modo mais explicitamente articulado:
Mas o Absoluto é também o Interior, e, nessa medida, jamais é acessível à inteligência além do limite imposto pela “preparação” desta. Se a inteligência tenta ultrapassar o seu limite natural por meio do pensamento, isto é, se intenta compreender o que está naturalmente oculto a seu entendimento, o coração se extraviará, exceto no caso dos autênticos sábios cujo entendimento não tem limite. Estes são os que compreendem a questão de Deus a partir de Deus, e não mediante o pensamento. Nada é “interior”, ou seja, nada está oculto a seu entendimento. E sabem que o mundo é a Forma ou a Ipseidade do Absoluto, isto é, a sua realidade interna, manifestando-se externamente sob o Nome “o Exterior”. Pois a Realidade divina (haqiqa), em sua absolutidade, jamais pode ser “Ipseidade” senão por uma determinação, ou limitação, ainda que seja a da própria “absolutidade”, como ilustram as palavras corânicas: “Ele é Deus, o Único”.
Quanto à Realidade divina como tal, está completamente livre de qualquer determinação, ainda que, em potência, esteja limitada por todas as determinações dos Nomes divinos.
O Absoluto não apenas se manifesta em todas as coisas do mundo, de acordo com a “preparação” de cada uma delas, mas é o “espírito” (ruh) de tudo, o “interior” (batin). Este é o significado do Nome “o Interior”. E, no sistema ontológico de Ibn Arabi, o fato de que o Absoluto constitua o “espírito” ou o “interior” de tudo significa que se manifesta no arquétipo (ou essência) de cada coisa. Trata-se de um tipo de manifestação (tajalli) na mesma medida que o tajalli exterior. O Absoluto, sob esta perspectiva, manifesta-se tanto interna quanto externamente.
O Absoluto é, interiormente, o “espírito” de tudo o que aparece exteriormente no mundo dos fenômenos. Nesse sentido, é o Interior. Pois a relação que mantém com as formas fenomênicas do mundo é análoga à da alma humana com o corpo que governa.
O Absoluto, sob este aspecto, manifesta-se em todas as coisas, e estas, neste sentido, são formas “determinadas” ou “limitadas” do Absoluto. Mas, se, deslumbrados por isso, atribuirmos importância apenas à “assimilação” (tashbih), cometeremos exatamente o mesmo erro de parcialidade que se recorrêssemos unicamente ao tanzih. “Quem ‘assimila’ o Absoluto o delimita e o determina na mesma medida que quem o ‘purifica’, e é um ignorante do Absoluto.”
Como diz al-Qashani,
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