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Gérmen



René Guénon: O GRÃO DE MOSTARDA

O Princípio divino que reside no centro do Ser é representado, na doutrina hindu, por um grão, ou uma semente (dhâtu), e por um germe (bhijâ)1 pois de certo modo só está virtualmente nesse ser, enquanto a "União" não estiver efetivamente realizada.2 Por outro lado, esse mesmo ser e a manifestação total à qual pertence só existem por causa do Princípio, só têm realidade positiva pela participação em sua essência e na exata medida dessa participação. O Espírito divino (Atma), sendo o Princípio único de todas as coisas, ultrapassa imensamente toda existência.3 É por isso que se diz que ele é maior que cada um dos "três mundos", terrestre, intermediário e celeste (os três termos do Tribhuvana), que são os diferentes modos da manifestação universal, e também maior que o conjunto desses "três mundos", pois está além de toda manifestação, por ser o Princípio imutável, eterno, absoluto e incondicionado.4


Roberto Pla: Evangelho de Tomé - Logion 106

É essa transformação, o reconhecimento do grão que “um é” em essência, e não a palha que veste o grão e com a qual nos identificamos habitualmente, o que põe fim à dualidade transitória, errônea, pois tudo é uno na unidade do “gérmen” semeado pelo Pai.

A presença do gérmen divino, a única Vida eterna implantada no mundo, é o que serve de selo da unidade; o que confirma que tudo há de ser um só reino, o De Deus, quando o munto tenha passado.

Em verdade, o mundo já passou para todo aquele que desde o princípio até hoje tenha sido transformado em grão. Quando todos os grãos se tenha revelado, ficaram consumadas essa dissipação do psíquico e esse desgaste das vestimentas, que profetizou Isaías.

Dissipação é negação de ser, essa negação que Jesus explicava como negação de si mesmo; uma negação que vem por si mesma quando a verdade sobre a natureza, evanescente, do psíquico, tenha sido descoberta. É o mesmo que as ondas do mar, que quando cessão não vão a nenhuma parte nem estão em seu lugar, senão que reabsorvem no mar e se dissipam como se nunca tivessem sido.

Quando às vestimentas desgastadas, é o tempo o que as leva a envelhecer e logo as queima e vêm a ser como fumaça. Mas tarde o tempo as esquece e nada resta delas por trás de si. Como se nunca houvessem sido.

Tudo isso significa que quando os reinos dos céus e da terra tenham passado, o todo terá recuperado a unidade no Reino de Deus (v. Céus e Terra, Águas).

Se a exegese manifesta do evangelho afirma um dualismo estrito para a eternidade pós-escatológica, é por sua interpretação peculiar do sentido da formosa imagem mateana da palha e do grão com a que João Batista abre a predicação.

Por efeitos do batismo de fogo, desse fogo que Jesus disse que ele tinha vindo para lançá-lo sobre a terra (Fogo sobre a terra) e cuja obra consiste em derramar sabedoria sobre o coração do homem, pode Cristo aventar as messes trilhadas — e essa é a ação do mangual — para separar do grão a palha e limpar sua eira.

Como bem sabemos, a palha é em cada homem a envoltura superficial do grão, e este é o Ser essencial, o espírito, a Palavra preexistente e eterna semeada em todo homem.

Que a palha significa aqui todos os conteúdos mortais próprios do mundo e dos quais o Homem se reveste; e que o grão é “figura” do gérmen eterno do Reino de Deus, é coisa tão evidente que por si só parece refutar a ideia manifesta de que o mangual ativado por Cristo tem por fim que a palha — os homens maus — chegue aos fornos de um inferno eterno e extramundano, e que os grãos de trigo limpo — os homens “bons” — sejam reunidos no celeiro de Deus.


NOTAS:
1 Observaríamos, a propósito, o parentesco das palavras latinas gramen, grão, e gérmen, germe. No sânscrito, a palavra dhâtu serve também para designar a raiz verbal como a "semente" cujo desenvolvimento dá nascimento à linguagem como um todo (cf. L'Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XI).
2 Dizemos "virtualmente" ao invés de "potencialmente", pois nada pode existir de potencial na ordem divina; é apenas no que se refere ao ser individual e em relação a ele que se poderia falar nesse caso de potencialidade. A pior potencialidade é a indiferenciação absoluta da "matéria-prima" no sentido aristotélico, idêntica à indistinção do caos primordial.
3 Tomamos a palavra "existência" em sua acepção etimológica rigorosa: existere, ou seja, ex-stare, manter o seu ser com outra coisa além de si mesmo, ser dependente de um princípio superior. A existência assim entendida diz respeito essencialmente ao ser contingente, relativo, condicionado, ou seja, o modo de ser que não tem em si mesmo sua razão suficiente.
4 Os "três mundos" não são mencionados na parábola do grão de mostarda, mas encontram-se representados pelas três medidas de farinha na parábola do fermento, que lhe segue imediatamente (Mateus, 13, 33; Lucas, 13, 20-21).