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id da página: 9753 Abade Stephane – Si Mesmo Abade Stephane

Abade Stephane Si Mesmo


STÉPHANE, Henri. Introduction à l’ésotérisme chrétien I. Paris: Dervy-livres, 1979

« Dixit insipiens in corde suo: non est Deus» (Sl. XIV, 1). Aquele que está na Ignorância, cuja mente está apaziguada e que já não experimenta nada, disse em seu coração: Deus não existe. Pois se Deus existe, todo o Universo, o mundo e o ego estão com ele, e a Existência Universal (Māyā) envolve o Si mesmo com uma nuvem impenetrável: «Deus só aparece quando todas as criaturas o enunciam... Por isso rogamos a Deus que sejamos libertados de Deus» (Eckhart).


Pode-se dissertar indefinidamente sobre Deus, o mundo, o homem, o bem, o mal, a vida, a morte, o céu, o inferno; tudo isso não adianta em nada: Ātmā permanece prisioneiro de Māyā. Não se deve dissertar sobre o Si mesmo: «Nada se pode dizer sobre o Princípio, quem dele fala o faz erroneamente» (Lao-Tse): é necessário libertar o Si das amarras psicológicas do ego pela pobreza em espírito: «O Reino de Deus não pertence a ninguém senão ao morto perfeito» (Eckhart); «Felizes os mortos que morrem no Senhor» (Apoc. XIV, 13).

Insipiens: «Dissemos algumas vezes que o homem deveria viver como se não vivesse nem para si mesmo, nem para a Verdade, nem para Deus. Mas agora falamos de outro modo e vamos mais longe. Para chegar a esta pobreza, o homem deve viver de tal maneira que não saiba mesmo que não vive nem para si mesmo, nem para a Verdade, nem para Deus, de modo algum. Mais ainda, é necessário que esteja vazio de todo saber a ponto de não saber, nem conhecer, nem sentir que Deus vive nele. É necessário que esteja vazio de todo conhecimento que ainda pudesse manifestar-se nele. Pois quando o homem ainda se encontrava no modo eterno de Deus, nada mais vivia nele; o que vivia era ele mesmo. Assim, dizemos, o homem deve estar vazio de seu próprio saber, como no tempo em que ainda não era, e deve deixar Deus operar o que Lhe apraz e permanecer, por sua parte, inteiramente disponível» (Eckhart).


O que constitui o «próprio saber» do homem é que Deus existe, que o Universo existe, que ele mesmo existe. Deve esvaziar sua mente desse conhecimento «objetivo» que está «sobreposto» ao Si mesmo (Shankara) e dizer em seu coração: «Deus não existe». Ao negar o próprio Princípio da manifestação e da objetividade (ou «objetivação»), permite ao Si mesmo afirmar-se in corde suo. A palavra dixit insipiens deve ser reportada ao Si mesmo; ela é pronunciada no coração e o Si mesmo diz: «Não há Deus». Em linguagem teológica, é a Palavra eterna pronunciada pelo Pai gerando o Filho Unigênito: «Tu és meu Filho, hoje te gerei» (Sl. II, 7); é assim que o homem deve «deixar Deus operar o que Lhe apraz» pois, diz ainda Mestre Eckhart, «o Pai não pode querer senão uma coisa, é gerar o Filho Unigênito», o que supõe que, por sua parte, o homem permaneça inteiramente disponível. Toda raciocinação, todo discurso, toda discussão, vão contra esta disponibilidade. Em termos vedantinos, quando as cinco envolturas (Kosha) que envolvem Ātmā (anna, prāṇa, manas, vijñāna, ānanda — o corpo grosseiro, o sopro vital, a mente, o intelecto e a felicidade) forem rejeitadas pelo aspirante, o que subsiste ao final da análise é a Testemunha, o Si mesmo, Ātmā.

O Si mesmo, é «Isso» (ididade) que a mente recobre de essência (quididade). São Alberto Magno diz: «Digo: Deus é uma essência, mas imediatamente, o nego, dizendo: Deus não é uma essência; Deus é uma essência além de toda essência. Procedendo assim, minha inteligência estabelece-se no infinito e nele se afoga».

A identidade entre «Ishvara» e «jīva» proclamada pelo mantra: «Tu és Isso», aparece quando a contradição aparente entre estes dois termos é superada; esta contradição é criada pelas envolturas: ela não existe realmente. Se se trata do Senhor (Ishvara) a sobreposição é Māyā ou a Ignorância; se se trata da «alma particularizada» (jīva), são desta vez as cinco envolturas, elas mesmas efeito de Māyā, que se interpõem. É portanto indispensável distinguir estas duas sobreposições, tanto as que se aplicam a Īśvara quanto as que se aplicam a Jīva: é necessário negar Deus tanto quanto o ego: então subsiste somente a Testemunha, o Si mesmo, Ātmā.

A definição escolástica do Si mesmo, dada por René Guénon: «O Si mesmo é o Princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é mais que uma modificação transitória e contingente, modificação que aliás não poderia de modo algum afetar o Princípio», coloca o discernimento fundamental entre o Real e o irreal: Ātmā e Māyā, Brahma e sua Śakti. Este discernimento é o pré-requisito indispensável para a realização da Identidade: «Tu és Isso». Antes de negar deus e o ego, é necessário começar por afirmar Deus e reconhecer que o ego é ilusório face a Deus.

Discernimento e Identidade são os dois polos da Via espiritual. A invocação «Jesus-Maria» (ou «Mani-padme» ou «Lā ilāha illā’Llāh») comporta estes dois aspectos: a distinção Jesus-Maria corresponde ao discernimento entre o Real e o irreal (Ātmā e Māyā) e o caráter ilusório de Māyā salienta a identidade de Ātmā através de todos os estados do ser, a reintegração da multiplicidade na Unidade, a «recapitulação de todas as coisas em Jesus-Cristo». Mas esta reintegração supõe a perfeita disponibilidade de Māyā, a pobreza em espírito tal como foi considerada acima, a submissão de Maria face ao Verbo divino, a «virgindade de alma» do «Profeta iletrado», a indiferenciação primordial de Prakṛti face a Puruṣa ou da Tábua guardada face ao Cálamo supremo. A repetição indefinida do mantra — a oração perpétua — determina uma «vibração» que repercute através da série indefinida dos estados do ser, ou através dos «três mundos» ou dos três estados de vigília, de sono e de sono profundo, permitindo assim a atualização, nas diversas modalidades do ser humano, da presença de Brahma, o único Real, o Um sem segundo, ou, equivalentemente, a liberação de Ātmā das amarras psicológicas e fisiológicas do «eu» ou das envolturas da mente.

«Realidade absoluta, Inteligência absoluta, Beatitude absoluta (sat-cit-ānanda), o Si mesmo que é infinito e imutável, é Brahma e tu és esse Brahma! Medita pois sobre ele no lótus de teu coração» (Shankara).