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Rio


VIDE: Rios do Paraíso; Subir Corrente; Corrente Abaixo; Mar; Oceano

René Guénon: A TRAVESSIA DAS ÁGUAS; SIMBOLISMO DA PONTE

Ananda Coomaraswamy: SOPROS E CORRENTES


Não-Dualidade

Wei Wu Wei: HOMEM — RIO


Gurdjieff

Relatos de Belzebu a seu Neto XLVIII

Para tornar mais compreensível e concreta a exposição que acaba de ser feita, será útil comparar a vida humana em geral a um grande rio que nasce de diversas fontes e flui pela superfície de nosso planeta, e a vida de cada homem a uma das gotas de água que compõem esse rio da vida.
Esse rio, a princípio, corre inteiro por um vale relativamente plano, e naquele ponto onde a Natureza sofreu particularmente o que se chama um “cataclismo não conforme à lei”, ele se divide em dois cursos separados ou, como também se diz, ocorre nesse rio uma “divisão das águas”.
Toda a água de um dos cursos, logo após passar por esse ponto, flui para um vale ainda mais plano e, sem encontrar o que se chama “paisagens majestosas e pitorescas” que a detenham, acaba por desaguar no vasto oceano.
O segundo curso, continuando seu fluxo por regiões formadas pelas consequências do referido “cataclismo não conforme à lei”, termina por cair em fendas da terra, elas mesmas também consequências do mesmo cataclismo, infiltrando-se nas profundezas do solo.
Embora, depois da separação, as águas desses dois cursos sigam independentemente e já não se misturem, ao longo de toda a extensão de seu percurso subsequente, frequentemente se aproximam tanto que todos os efeitos engendrados pelo processo de seu fluir se unem, e até mesmo, em certos fenômenos atmosféricos, como tempestades e ventos, respingos de água, ou mesmo gotas isoladas, passam de um curso para o outro.
Individualmente, a vida de cada homem, até alcançar a idade da responsabilidade, corresponde a uma gota d’água no fluxo inicial do rio, e o lugar onde ocorre a divisão das águas corresponde ao momento em que ele atinge a maturidade.
Após essa ramificação, qualquer movimento ulterior significativo, segundo a lei, tanto do rio como dos pequenos detalhes desse movimento para a efetivação do destino previamente determinado do conjunto, aplica-se igualmente a cada gota individual, apenas na medida em que a gota pertence à totalidade do rio.
Para a gota em si, todos os seus deslocamentos, direções e estados, causados pelas diferenças de posição, pelas diversas condições acidentalmente surgidas ao redor e pelo ritmo acelerado ou retardado de seu movimento, têm sempre caráter totalmente fortuito.
Para as gotas, não há uma predeterminação separada de seu destino pessoal — o destino é predeterminado apenas para o rio em seu conjunto.
No início do fluxo, as gotas estão aqui num instante, ali no instante seguinte, e um momento depois talvez já não existam como são, tendo sido salpicadas para fora do rio e evaporadas.
E assim, quando, por causa da vida indecorosa dos homens, a Grande Natureza foi constrangida a engendrar o correspondente em suas presenças comuns, a partir desse momento foi estabelecido, para os fins da realização comum de tudo o que existe, que a vida humana na Terra deveria fluir em dois cursos; e a Grande Natureza previu e fixou gradualmente, nos detalhes de sua realização geral, uma correspondência conforme à lei, de modo que nas gotas de água do fluxo inicial do rio da vida, que possuem o que se chama “lutas subjetivas de autonegação”, pudesse surgir ou não “algo”, graças ao qual se adquiririam certas propriedades que conferem a possibilidade, no ponto da bifurcação das águas do rio da vida, de entrar num ou noutro curso.
Esse “algo”, que na presença comum de uma gota de água é o fator que nela atualiza a propriedade correspondente a um dos dois cursos, é, na presença comum de cada homem que atinge a idade da responsabilidade, aquele “Eu” a que se fez referência na conferência de hoje.
O homem que possui em sua presença comum o próprio “Eu” entra num dos cursos do rio da vida; e o homem que não o possui entra no outro.
O destino subsequente de cada gota no rio da vida é determinado na divisão das águas, segundo o curso em que a gota ingressa.
E é determinado, como já se disse, pelo fato de que um desses dois cursos deságua no oceano — isto é, naquela esfera da Natureza geral que participa do que se chama trocas recíprocas de substâncias entre diversas grandes concentrações cósmicas, por meio do processo denominado “Pokhdalissdjancha”, uma parte do qual, aliás, as pessoas contemporâneas chamam “ciclone” —, em consequência do que essa gota de água adquire a possibilidade de evoluir para a concentração imediatamente superior.
E, ao fim do fluxo do outro curso, como já se disse, para as fendas das “regiões inferiores” da Terra, onde participa do processo contínuo denominado “construção involutiva” que se realiza no interior do planeta, ela se transforma em vapor e é distribuída nas esferas correspondentes dos novos surgimentos.
Após a divisão das águas, as sucessivas conformidades à lei, grandes e pequenas, e os detalhes do movimento exterior com vistas à efetivação do destino previamente determinado de ambos os cursos, também derivam dessas mesmas leis cósmicas; porém os resultados que delas provêm tornam-se, por assim dizer, “subjetivizados” para ambos os cursos, respectivamente; e, embora comecem a funcionar de modo independente, sustentam-se e assistem-se mutuamente. Esses resultados secundários subjetivizados, procedentes das leis cósmicas fundamentais, por vezes atuam lado a lado, por vezes colidem ou se cruzam, mas nunca se misturam. As ações desses resultados secundários subjetivizados podem, em certas condições, estender-se também a gotas individuais.
Para nós, homens contemporâneos, o principal mal é que — em virtude das diversas condições de nossa existência ordinária, estabelecidas por nós mesmos, principalmente em consequência da educação anormal —, ao alcançar a idade da responsabilidade e adquirir presenças que correspondem apenas ao curso do rio da vida que deságua nas “regiões inferiores”, nele ingressamos e somos arrastados para onde ele quiser, e, sem refletir sobre as consequências, permanecemos passivos e, submetendo-nos ao fluxo, continuamos a deriva.
Enquanto permanecermos passivos, não apenas teremos inevitavelmente de servir unicamente como meio para a “construção involutiva e evolutiva” da Natureza, mas também, pelo resto de nossas vidas, teremos de submeter-nos servilmente a todo capricho de toda sorte de acontecimentos cegos.
Como a maioria dos ouvintes presentes já, como se diz, “atravessou” a idade da responsabilidade e reconhece sinceramente que até agora não adquiriu o próprio “Eu”, e ao mesmo tempo, segundo o conteúdo de tudo o que aqui foi dito, não vislumbra para si perspectivas particularmente agradáveis, para que vós — precisamente vós que reconheceis isso — não vos desanimeis demasiadamente e não caiais no que se chama “pessimismo” tão disseminado na vida anormal contemporânea dos homens, declaro francamente, sem qualquer segunda intenção, que, segundo minhas convicções — formadas ao longo de muitos anos de investigações corroboradas por numerosos experimentos conduzidos de modo excepcional, sobre os resultados dos quais se baseia o “Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem” por mim fundado —, mesmo para vós, ainda não é tarde demais.
A questão é que as referidas investigações e experimentos mostraram-me de modo muito claro e definido que, em tudo o que está sob o cuidado da Mãe Natureza, está prevista a possibilidade de os seres adquirirem o núcleo de sua essência, isto é, o seu próprio “Eu”, mesmo após o início da idade da responsabilidade.
A previdência da Justa Mãe Natureza consiste, neste caso, no fato de que nos é concedida, sob certas condições internas e externas, a possibilidade de atravessar de um curso para o outro.
A expressão que nos chegou desde tempos antigos, “a primeira libertação do homem”, refere-se precisamente a essa possibilidade de passagem do curso destinado a desaparecer nas regiões inferiores para o curso que deságua nos vastos espaços do oceano ilimitado.
Passar para o outro curso não é tão simples — não basta desejar e atravessar. Para isso, é necessário, antes de tudo, cristalizar conscientemente em si dados que gerem, em suas presenças comuns, um impulso constante e inextinguível de desejo por tal travessia e, depois, uma longa preparação correspondente.
Para essa travessia é preciso, antes de tudo, renunciar a tudo aquilo que vos parece “bênção” — mas que, na realidade, são hábitos automáticos e servis — presentes nesse curso da vida.
Em outras palavras, é necessário tornar-se morto para o que se converteu, para vós, em vida ordinária.
É precisamente dessa morte que falam todas as religiões.
Ela é definida no dito que nos chegou da mais remota antiguidade: “Sem morte não há ressurreição”, isto é, “Se não morreres, não ressuscitarás.”
A morte de que se trata não é a morte do corpo, pois, para tal morte, não há necessidade de ressurreição.
Com efeito, se há uma alma, e além disso uma alma imortal, ela pode prescindir da ressurreição do corpo.
Nem tampouco a necessidade de ressurreição consiste em nossa aparição diante do terrível Juízo do Senhor Deus, como nos ensinaram os Padres da Igreja.
Não! Mesmo Jesus Cristo e todos os outros profetas enviados do Alto falaram da morte que pode ocorrer ainda durante a vida, isto é, da morte daquele “Tirano” de quem provém nossa escravidão nesta existência, e da qual depende exclusivamente a primeira e principal libertação do homem.