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Sacrifício

MISTÉRIO — SACRIFÍCIO


VIDE: SOFRIMENTO


Eudoro de SousaSempre o Mesmo acerca do Mesmo

Que sentido razoável se poderá atribuir ao sacrifício cruento, ao drama ritual, em que, neste aspecto parcial da religião grega, não se admite, ao lado do rito, senão a presença de um mito etiológico (isto é, do que propriamente não pode dizer-se que seja mito)? E bastante claro que o «sacrificado» não é o animal que morre, mas o homem que mata. Demais, ainda podemos adiantar, como resultado da mais simples reflexão, que numa religião que evoluirá no sentido de um teísmo, com maior ou menor quantidade de «notas» de transcendência, a pergunta de como a fumaça exalada por gorduras queimadas possa ser grata aos deuses imortais, impõe-se naturalmente, envolta em espessas nuvens de perplexidade. Eis porque nos parece inevitável afastar o pensamento de que tais sacrifícios não sejam explicáveis, sem recurso à ideia de contaminação, ou de que se trata aqui, de um dos tais casos de ingerência da «aplicação» da «expressão» de uma coisa, à «expressão» de outra. Por demais compreensíveis são os protestos dos filósofos da antiguidade, de Heráclito a Porfírio, contra o sacrifício cruento, pois a matança, ritual ou não, de homens e animais, parece inexcedível por qualquer dos horrores que nossos olhos possam ver, sem que, convulsionados até o paroxismo, os nossos sentimentos e emoções de repulsa, nos deixem, depois, numa apatia que mal esconde o remorso por havermos compactuado com infâmia — o atentado gratuito contra a vida, que talvez seja, no fundo, a maior falta que se comete contra o primeiro de todos os princípios morais.

Tanto maior o nosso espanto, diante do sacrifício dos plantadores primitivos, pois aí, a matança ritual, a abominável caça de cabeças, o repugnante canibalismo, revertem no drama eminentemente religioso, com a decorrência moral do próprio dever de matar. Mas, neste caso, dispomos de um mito exemplar, Hainuwele, ou dos efeitos de um impulso mítico, múltipla e diversamente expresso — embora, por vezes, não seja fácil indiciá-lo em mitos clássicos — que nos dá uma razão seminal, que, desenvolvida, acalma aquele justificado repúdio. A primordialidade de um assassino cosmogônico ou teocosmogônico, ou, ainda, teo-antropo-cosmogônico, que o ritual não dispensa sem que negue a sua competência de perene renovação das origens, em privilegiados pontos, ao longo da linha em que se situa o originado — o pensamento mal oculto no mito de que, paradoxalmente, a morte precede a vida, projetado na crença de que só procria quem já matou, dá lugar à meditação sobre o mistério da vida, que retarda e modera todo o movimento de repúdio e revolta contra a insensatez e crueldade dos homens que não puderam resistir à prática da ação (por nós) infamada. E deixando parenteticamente isolada e esquecida a repugnância psicofísica e a condenação moral, temos até de reconhecer que este sacrifício é o único que se nos apresenta com a razoável necessidade de haver existido e, sob formas de atenuado realismo, de ainda subsistir. Por «formas atenuadas», entendemos, é claro, a substituição da vítima («substituição» talvez só o seja para os não participantes do drama ritual) por alguma de suas formas simbólicas — e «simbólicas» no sentido que propriamente se deve atribuir à palavra. Porque, neste tipo de religiosidade, não há dúvida que a vítima, seja qual for a forma de que se revista, é aquela mesma divindade que, assassinada — e porque o foi -, se transmutou no mundo ou nas coisas mais valiosas que no mundo existem. No momento do sacrifício, os sacrificadores não são homens, mas deuses (demas), semelhantes ao que morre por suas mãos. É certo que no mito exemplar, a que nos vimos referindo, a motivação do assassínio é atribuída à inveja, causa nem assim tanto humana, em mais altos níveis de religiosidade — referimo-nos, por exemplo conhecido, aos grandes escritores da Grécia clássica, sobretudo poetas, que mostram o contrário: são os deuses que têm inveja dos homens, isto é, os que temem a usurpação humana de suas mais elevadas prerrogativas. Em suma, este sacrifício é o único que merece o nome (sacrum facere), pois não é o de um qualquer dos bens humanos, separado para oferta a quem deles prescinde, mas a instituição do sagrado, no corpo do próprio deus. O outro não tem razão de ser, nunca a teve (a menos que se invoque o convivium, cuja natureza se desmente na prática estabelecida e pela sua etiologia: os deuses vêm partilhar de um banquete, em que a parte pior foi a reservada para eles), e em breve se extinguiu pelas mesmas causas que já tinham suscitado o «burlesco» na epopeia homérica e ainda provocariam a «sátira» de mais tardios escritores, como é o caso flagrante de Luciano; e de pouco valeu a tentativa de reabilitação, intentada por Hesíodo e Esquilo, insistindo na «teologia» que, até o nosso tempo, persistiu nas páginas admiráveis, mas pouco convincentes, de Walter F. Otto (Die Götter Griechenlands). A religião olímpica, com seu sacrifício-oferta, nasceu morta, e só teve a vida, mais aparente do que real, que lhe insuflou a Igreja-Pólis; mas até essa cessou ao iniciar-se a época do cosmopolitismo helenístico.

Sacrifício autêntico é, pois, o de um deus que cria homens e natureza, quando, assassinado por outros deuses, naqueles se transforma. Também, verdadeiro mito é só o relato do deicídio primordial e da transformação que não deixa subsistir, longe ou perto do transformado, a «personalidade» que pela morte se transformou. Depois desta, uma ressurreição é «expediente», uma astuciosa intromissão teística, que se constitui em um dos factores predominantes do politeísmo. De um deus otiosus, causa prima, etc., que, subitamente, e através de uma fiat, provoca a viragem do Nada em Ser, não há o que contar, mas só o que pensar — o que pensar, pela transposição de todos os limites ou horizontes do pensável.


Beijo do Sol (notas)

Em Śatapatha Brāhmaṇa XIII.2.8.2 onde eles «conciliam» (saṃjñāpayanti) a vítima e assim a «matam» (ghnanti), e enquanto isso o Adhvaryu, invocando ao Sopro (com Sāyana Śatapathā XXII.18), «com isso deposita os sopros de vida na vítima (prāṇān-evasminn-etad-dadhāti) para que a oferenda seja feita por ele com esta vítima como com uma vítima viva» (jīvataiva paśuneyām bhavati), cf. Taittirīya Saṃhitā III.1.4.3: Śatapatha Brāhmaṇa III.8.2.4, onde diz-se que o alimento, «a oblação dos Deuses está viva, não é uma coisa morta para aqueles que não morrem» (jīvam vai devāhāvir-amṛtam-amṛtānām) e enquanto a esposa do Sacrificador asperge (upaspṛśati), ou lava, a boca, narizes, olhos, etc., da vítima morta, com isso a dota destes sopros de vida, e assim a oblação dos Deuses torna-se viva, não uma coisa morta, para aqueles que não morrem»: 7, «eles a aspergem toda (parisiñcante), começando com a cabeça, e assim a ressuscitam» (samjīvayanti). Similarmente Taittirīya Saṃhitā VI.6.9, em relação com o Soma morto, onde uma parte do suco «se retira vivo» (jīvagrahaḥ), não seja que o Sacrificador (sempre igualado com a vítima) seja morto também. Assim mesmo, quando Soma foi morto, «“Que teu soplo cresça”, diz; certamente ele tira a dor dos sopros» (Taittirīya Saṃhitā VI.3.9.1). Tudo isto não é só para proporcionar aos Deuses alimento vivo, senão para que o Sacrificador mesmo, que se identifica ritualmente com a vítima, possa finalmente ir vivo ele mesmo ao mundo dos Deuses, «possa partir deste mundo ao céu dos vivos» (jīva-svarga asmāl lokāt preya, Śatapatha Brāhmaṇa XII.6.1.39, cf. Taittirīya Saṃhitā VI.6.9.2): a vítima (o cavalo em Śatapatha Brāhmaṇa XIII.2.8.1, Agni em Taittirīya Saṃhitā V.6.8.1, Cristo no Sacrifício cristão) deve ter sido ressuscitada e ter ido ao céu, se ela há de ser o guia do Sacrificador no fim último. Para a vítima como guia ver Śatapatha Brāhmaṇa XIII.2.3.1-2 e XIII.2.8.1; Taittirīya Saṃhitā VI.3.8.

Da mesma maneira, o caçador índio americano, quando matou um bisonte, fuma o cachimbo ritual (calumet) e dirige a fumaça (que ordinariamente se sopra para as seis direções do espaço, com respeito ao fumante mesmo que é central) para o focinho do animal morto, para compensar, como se explica, a tomada da vida com um ato que implica o dom da vida. Falando tradicionalmente, as coisas (sejam plantas, animais ou homens) não se «matam», senão que se «sacrificam», isto é, se fazem sagradas para aqueles poderes aos quais representam e aos quais elas pertencem. Na prática judaica, o sacerdote que mata animais quadrúpedes para alimento, lhes tira os pulmões e sopra neles, e se os pulmões não retêm o ar, a carne não é kosher: aqui, não só se sacrifica o animal e se faz provisão para sua reanimação, senão que a prova que se faz para determinar se a vítima era ou não realmente «imaculada» (sânscrito medhya, apta para o sacrifício) é uma prova para a tuberculose, e esta única ação ritual tem ao mesmo tempo um valor metafísico e um valor físico.