VIDE: VIDA
Partindo da irredutibilidade da Verdade do Cristianismo ao pensamento, a toda forma de conhecimento e de ciência, Michel Henry confirma o dito de Jesus: "Te louvo, ó Pai, (...) por ter oculto isto àqueles que têm ciência e entendimento e por o ter revelado ao pequeninos" (Reino dos Pequeninos). Ao retirar a priori ao pensamento toda possibilidade de aceder à revelação divina, e isto porque a fenomenalidade de tudo o que se mostra ao pensamento é ela mesma incapaz de tornar manifesta esta Revelação divina, Henry confirma que a fenomenalidade desta Revelação não se fenomenaliza jamais enquanto "no de fora" de um mundo. Assim sendo se não é o pensamento ou qualquer outra forma de conhecimento, se não é a verdade do mundo que dá acesso à Revelação de Deus, uma possibilidade subsiste pelo menos, uma única, já evocada a bem dizer e agora irrecusável. A Deus compreendido como sua auto-revelação segundo uma fenomenalidade que lhe é própria, um acesso só é suscetível de se produzir aí onde se produz esta auto-revelação e da maneira que ela o faz. Aí onde Deus chega originalmente em si, em sua fenomenalização da fenomenalidade que é a sua e assim como a auto-fenomenalização desta fenomenalidade própria, aí também, aí somente está o acesso a Deus. Não é o pensamento que nos falta para aceder à Revelação de Deus. Bem ao contrário, é somente quando o pensamento fracassa, porque a verdade do mundo é ausente, que pode se realizar o que está em jogo: a auto-revelação de Deus — a saber a auto-fenomenalização da fenomenalidade pura sobre o fundo de uma fenomenalidade que não é aquela do mundo.
Onde se realiza uma auto-revelação desta espécie? Na Vida, como a essência desta. Pois a Vida nada mais é que o que se auto-revela — não algo que teria, a mais, esta propriedade de se auto-revelar mas o fato mesmo de se auto-revelar, a auto-revelação enquanto tal. Por toda parte onde algo tal como uma auto-revelação se produz, há Vida. Por toda parte onde há Vida, esta auto-revelação se produz. Logo se a Revelação de Deus é uma auto-revelação que nada deve à verdade do mundo e demandamos onde uma tal auto-revelação se realiza, a resposta não sofre qualquer equívoco: na Vida e nela somente. Assim estamos em presença da primeira equação fundamental do cristianismo: Deus é Vida, é a essência da Vida, ou, se se prefere, a essência da Vida é Deus. Dizendo isto já sabemos o que é Deus, nós o sabemos pelo efeito de um saber ou de um conhecimento qualquer, nós não o sabemos pelo pensamento, sobre o fundo da verdade do mundo; nós o sabemos e não podemos o saber senão em e pela Vida ela mesma. Não só o podemos saber em Deus. Mas esta nota é prematura.1
A afirmação segundo a qual a Vida constitui a essência de Deus e lhe é idêntica, é constante no Novo Testamento. Contentemos aqui com breves indicações: "Eu sou o Primeiro e o Último e Aquele que vive" (Apocalipse 17); o "Deus Vivo" (1Tim 3,15); "Aquele do qual se atesta que ele vive" (Hb 7, 4-10); "Aquele que é vivente" (Lc 24,5). sem falar das declarações decisivas que intervêm quando de uma elaboração mais exigente da essência divina e sobre as quais retornaremos. "Assim como o Pai tem a vida nEle, assim deu ao Filho de ter a vida nEle" (Jo 5,26). Do Verbo enfim que é Princípio, o celebre Prólogo de João declara: "Nele estava a Vida".
O que é próprio à Vida enquanto auto-revelação, é portanto que ela se revela ela mesma. Esta aparente tautologia implica duas significações que importa dissociar aqui uma primeira vez. Auto-revelação, quando se trata da essência da Vida, quer dizer por um lado que é a Vida que realiza a revelação, que revela. Mas também, por outro lado, que "o que ela revela, é ela mesma". E é aqui que o modo de revelação próprio à Vida difere profundamente daquele do mundo. Pois o mundo revela, torna manifesto ele também, mas no "fora", lançando, assim como vimos, cada coisa fora de si, de tal sorte que ela não se mostra jamais senão como outra, diferente, exterior, neste meio de exterioridade radical que é o "fora de si" do mundo. Duplamente exterior portanto. Exterior ao poder que a torna manifesta — e é aqui que intervém a oposição entre a Verdade e o que ela torna verdadeiro. Exterior a ela mesma, por outro lado — ela que só se mostra em sua própria exterioridade a si, vazia de sua própria substância, irreal, desta irrealidade que lhe vem de seu próprio modo de aparição, da verdade do mundo. Se portanto a Vida se auto-revela não somente neste sentido que ela realiza a revelação mas porque é ela mesma que ela revela em uma tal revelação, então ela não é possível porque o modo de revelação que lhe é próprio ignora o mundo e seu "fora". "Viver não é possível no mundo". Viver só é possível fora do mundo, aí onde reina uma outra Verdade, uma outra maneira de revelar. Esta maneira de revelar é aquela da Vida. A Vida não projeta fora o que ela revela, ela o mantém em si e o retém ela mesma. Ora é somente porque ela mantém o que ela revela neste abraço que nada poderia romper, que ela é e pode ser a vida. A Vida se abraça, se experimenta sem distância, sem diferença. A esta condição aí somente ela pode se experienciar si mesmo, "ser si mesmo o que ela experiencia" — si mesmo por consequente o que experiencia e o aquilo que é experimentado.
Se Deus é Vida, então os primeiros resultados da análise fenomenológica da vida tornam possível a inteligência das tese fundamentais do cristianismo. A vida não se mostrando jamais no mundo, assim como acabamos de lembrar, é impossível de aí percebê-la, senão sob a forma de de significações irreais coladas a processos objetivos — significações cuja origem permanece inexplicada tanto tempo que, se atendo ao aparecer do mundo, busca-se esta origem nele. Ausente do mundo, a vida é portanto também do campo da biologia, que é um campo mundano. Logo se põe a questão: é ainda possível ter acesso à Vida, quer dizer à essência de Deus ele mesmo? E, neste caso, onde e como?
A resposta da fenomenologia da vida da qual traçamos o primeiro esboço é esta: temos acesso à Vida ela mesma. Onde? na Vida. Como? pela Vida. Que seja na Vida e por ela somente que se possa aceder à Vida, implica uma pressuposição decisiva: é a Vida ela mesma que chega em si. Tal é precisamente a primeira abordagem fenomenológica da vida, sua definição como verdade, ou melhor a definição da Verdade como Vida: a Vida é auto-revelação. Nela é ela mesma que cumpre a revelação e ela mesma que é revelada. É porque é a Vida ela mesma que chega originalmente em si, e isso enquanto ela é auto-revelação, que ela vem em primeiro. Pois nada nem ninguém não poderá jamais chegar nela se seu chegar na Vida não se apoia sobre o próprio chegar da Vida em si — ainda mais: se seu chegar na vida não se identifica ao chegar original da Vida nela mesma.
O que chega na Vida, é o vivente. Como o vivente chega na Vida, é o que acabamos de entrever pela primeira vez: o vivente chega na Vida em se apoiando sobre o próprio chegar da Vida em si, em se identificando a este último — à auto-revelação da Vida ela mesma idêntica à Revelação de Deus.