VIDE: Schuon Pérolas Peregrino; Coomaraswamy Peregrino; Doutrina Iniciática da Peregrinação
Michel Evdokimov
Peregrinos Russos e Andarilhos Místicos
Na Bíblia, viagens, peregrinações, andanças ao léu assumem uma gama vastíssima de significados. Podem ser, com nuances diversas, sinal de um castigo, que remonta à condição terrestre original da humanidade, de uma penitência ou purificação, de um ritual ou de obediência a uma promessa ou de um encontro com Deus. Na palavra latina per-egrinus, de onde vem o nosso peregrino, acha-se contida a ideia de atravessar um campo (ager = campo; per = através de, por), um território, uma fronteira. À semelhança de Adão, todo peregrino é antes de mais nada um estrangeiro numa terra que não lhe pertence. Mas não será condenado a miseravelmente vagar sem fim. Em sua imensa compaixão, Deus, com efeito, moveu-se de pena por sua criatura e enviou ao mundo Seu Filho para reconduzi-la ao antigo jardim de delícias. E ao se encarnar, Jesus Cristo assumiu plenamente a condição existencial do homem desenraizado, expulso para a superfície do mundo. Sua missão na terra se desenrolou como incessante caminhar ao longo das poeirentas estradas da Palestina.1
A um escriba, cheio de ingênuo zelo, que lhe pedia para acompanhá-l'O por toda a parte aonde fosse, Jesus responde: "As raposas têm tocas, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça" (Mt 8,20). Jesus quer assim fazer que ele sinta a precariedade da existência condenada a mobilidade contínua e que não poderia encontrar o perfeito repouso aqui na terra. A missão do Filho que desceu a esta terra só termina no dia da Ascensão, quando o Deus-Homem ressuscitado sobe novamente ao céu arrastando consigo a natureza humana, para lhe devolver todo o seu brilho e restabelecê-la em sua antiga dignidade:
Tendo descido do alto dos céus à terra, tendo, como Deus, resgatado a progênie de Adão, que jazia humilhada na prisão do inferno e, por tua Ascensão, ó Cristo, tendo-a feito novamente subir ao céu, Tu a fizeste sentar-se contigo no trono de Teu Pai, porque és misericordioso e amigo do homem (Tropário das Matinas da Ascensão).
O verdadeiro discípulo de Cristo é aquele que não se instala na espessura deste mundo, mas assume uma condição peregrinante que o impele para um além onde se cumprirão definitivamente todas as promessas.
Evola Doutrina do Despertar
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A primeira grande ação no caminho ascético é indicada pelo termo pabbajja, significando literalmente "partida".
- De acordo com o esquema dos textos, aquele que ouve a doutrina e descobre o seu significado mais profundo, e que assim chega à "confiança", adquire uma convicção expressa por esta fórmula: "O lar é uma prisão, um lugar poeirento. A vida de um eremita é ao ar livre. Não se pode, permanecendo em casa, cumprir ponto por ponto a ascese completamente purificada, completamente iluminada".
- Compreendendo isto, o "filho nobre" após pouco tempo sacode o apego a coisas e pessoas, deixa a casa e dedica-se à vida de um asceta errante.
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Traduziu-se o termo bhikkhu, que designava os seguidores do Buda, por "asceta errante", embora literalmente signifique um "mendicante".
- Originalmente os bhikkhus eram uma espécie de monges errantes e mendicantes: a natureza semiconventual das organizações budistas só apareceu num período posterior.
- O termo que se usou possivelmente permite menos mal-entendidos, pois a aceitação de esmolas ocorria numa sociedade onde tal ato, feito a um asceta, era considerado uma graça e não uma humilhação.
- Pensava-se que um asceta, ao atuar como ponto de contacto entre o visível e o invisível, cumpria uma função supremamente útil, sendo o dar (dana) concebido como uma ação produtora de benefícios equivalentes aos da "conduta correta" e do desenvolvimento contemplativo.
- Assim, como sinal de desprezo, as assembleias budistas podiam indicar famílias das quais o bhikkhu deveria recusar esmolas, invertendo simbolicamente a sua tigela.
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Estes detalhes à parte, os bhikkhus originalmente constituíam uma ordem livre com um chefe, semelhante a um equivalente ascético das ordens medievais ocidentais de cavaleiros andantes.
- O Buda recomendava que dois discípulos não tomassem o mesmo caminho.
- O ponto essencial era a ausência de vínculos e do desejo de companhia, um gosto pela solidão e uma liberdade tão ampla quanto possível.
- "Fugir da sociedade como um fardo pesado, buscar a solidão acima de tudo".
- Ter muito que fazer, evitar a solidão e viver em ambientes mundanos são considerados "condições desfavoráveis para a batalha".
- Aquele que não está livre do vínculo familiar pode ir para o céu, mas não alcançará o despertar.
- "Que o asceta esteja sozinho: é suficiente que tenha de lutar consigo mesmo".
- "Apenas de um asceta que habita sozinho, sem companhia, é de esperar que possua prazer na renúncia, prazer na solidão, prazer na calma, prazer no despertar".
- E ainda: "Aquele que desfruta da sociedade não pode encontrar alegria no desapego solitário", e sem esta alegria não se pode concentrar firmemente nas coisas do espírito nem alcançar o conhecimento correto.
- O desapego e a solidão implícitos em pabbajja devem ser entendidos tanto no aspeto físico como no espiritual: desapego do mundo e, acima de tudo, de pensamentos do mundo.
- Portanto, não se deve deixar afetar pela conversa das pessoas nem prestar demasiada atenção às palavras.
- Não se deve disputar com o mundo, mas julgá-lo pelo que é, isto é, impermanente.
- Os textos falam de "ser para si mesmo uma ilha, de buscar refúgio em si mesmo e na lei, e em nada mais".
- Se um homem não consegue encontrar um companheiro sábio e constante, "deve caminhar sozinho, como aquele que renunciou ao seu reino, como um animal orgulhoso na floresta, calmo, não fazendo mal a ninguém".
- Outras expressões ilustrativas descrevem o asceta como aquele que "vai sozinho como um rinoceronte", "como um leão que não treme a qualquer ruído, como o vento que não é detido por nenhuma rede, como uma folha de lótus intocada pela água".
- Um verdadeiro asceta é "aquele que procede sozinho e contemplativo, sobre quem nem a culpa nem o louvor têm efeito, que guia outros, mas a quem outros não sabem como guiar".
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Considerando a adaptabilidade da ascese do Ariya aos tempos modernos, questiona-se até que ponto o preceito da "partida" como abandono real do lar deve ser tomado literalmente.
- Os textos consideram por vezes um triplo desapego: físico, mental, e ambos físico e mental.
- Se o último representa a forma mais perfeita, é o desapego mental que deve reivindicar a atenção particular hoje, tendo sido também enfatizado nos desenvolvimentos do Mahayana, incluindo o Budismo Zen.
- Os textos canónicos mencionam a possibilidade de uma interpretação simbólica do conceito de "partida", onde "lar" é equivalente aos elementos que compõem a personalidade comum.
- Uma variação de um texto citado afirma que "a vida solitária é bem alcançada quando o que é passado é posto de lado, o que é futuro abandonado, e quando a vontade e a paixão, no presente, estão inteiramente sob controlo".
- Outras passagens referem que um homem erra justamente como um bhikkhu quando subjugou o tempo passado e futuro, possui um entendimento puro e "deixou para trás tanto o agradável como o desagradável, apegando-se a nada, de todas as formas independente e sem apegos".