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Oceano


VIDE: GRANDE FORÇA

Ananda Coomaraswamy: OCEANO

Pierre Gordon: A IMAGEM DO MUNDO NA ANTIGUIDADEOCEANO


Filosofia

Eudoro de Sousa: HORIZONTE E COMPLEMENTARIDADE

4. Um horizonte extremo, limitante real da terra, encontramo-lo pela primeira vez mencionado no Ludíbrio de Zeus (Horn, II., 14, 153 e segs.), por conseguinte, nos umbrais da literatura grega. Enquanto prepara o ardil, mediante o qual o Soberano do Olimpo, enredado no amor e presa do sono, não poderá velar pelo cumprimento do seu próprio desígnio — a derrota dos Aqueus, como desafronta ao injuriado Aquiles —, Hera diz que está a caminho dos limites da terra; e di-lo uma vez a Afrodite (200), e depois a Zeus (302), repetindo, o poeta da Ilíada, exatamente os mesmos versos formulares: «Parto a ver os limites da terra nutriz, o Oceano, gênese dos deuses.» A aposição de Okeanós (Oceano) a peírata gaíês (limites da terra) não deixa dúvida sobre a identidade do horizonte: não é simplesmente a linha que une ou separa céu e terra, mas um rio, imenso circuito de águas profundas (bathyrrhóou, por exemplo, em II, 7, 422, e 14, 311) e «turbilhonantes na profundidade» (bathydinêi, Od., 10, 511), correndo de si para si mesmas (apsorrhóou, II, 18, 359, e Od., 20, 65), sem distinção de foz e nascente. E claro que um horizonte como delimitante da terra poderia ter resultado de uma defectiva e distorcida interpretação da experiência natural. Mas tão claramente se vê que nenhuma experiência podia sugerir a equiparação do horizonte a um rio circundando a terra, e demais, a um rio que na terra não tem semelhante. E as dimensões míticas do horizonte acrescem, quando verificamos que após a notável aposição do «Oceano» aos «limites da terra» vem a não menos notável aposição de «gênese dos deuses» a «Oceano». Se naquela se identificava o horizonte com o curso de um rio sem princípio nem fim, nesta, agora, constitui-se a infinita, indefinida e indiferenciada corrente em potência teogônica. E mais significativo é um dos versos seguintes (246): «do Oceano que, na verdade, é gênese de todas as coisas» (génesis pántessi tétyktai). A potência teogônica também é cosmogônica, pois do horizonte, ou de além dele, provêm os deuses e o universo inteiro.

5. Neste episódio exemplar do «burlesco» olímpico, não se descobre facilmente como necessidade e verosimilhança poéticas teriam exigido compô-lo sobre um fundo cosmogônico. Pois, que o Ludíbrio de Zeus implica uma cosmogonia, é facto conhecido e reconhecido pela filologia homérica, e não há argumentos que decidam acerca de interpolações tardias; nem os pluralistas podem recusar-se a admitir que todo o livro 14 faz parte integrante da «Ménis», isto é, do núcleo primitivo da Ilíada. Em todo o caso, sobram motivos de perplexidade. Primeiro, diante daquele abstrato, gênesis, tão frequente na linguagem dos filósofos «naturalistas», mas que em mais de vinte e cinco mil versos da epopeia jônica, só aparece nos três precedentemente citados. Depois, perante o notável isolamento, em toda a tradição grega, de uma teogonia que, embora conheça a sucessão hesiódica Urano-Crono-Zeus, parece confundir-nos com a primordialidade do Oceano. A questão não se resolve na perspectiva de uma tradição intransigentemente autárquica do pensamento grego. No princípio da década de vinte, em defesa da autarquia, ainda Pohlenz recorreu à hipótese de que Homero pusera arbitrariamente «Oceano» no lugar de «Urano», mantendo a sucessão ternária; mas no fim da mesma década, Wilamowitz já não podia deixar de reconhecer que a teogonia do Ludíbrio de Zeus viera de fora. Na verdade, sobejam razões para crer que o poeta da Ilíada antepõe o Oceano ao Céu e, por conseguinte, propõe uma sucessão quaternária, Oceano-Urano-Crono-Zeus, em vez da sucessão ternária, que, a partir de Hesíodo, prevalece na tradição que se pretende dar por especificamente grega. Aquela, porém, é a que encontramos implantada, com profundas raízes, no Próximo e Médio Oriente, muitos séculos antes da presumível data em que foram redigidos os poemas homéricos. Prescindimos, sem prejuízo da sequência, de recolocar em pauta a questão de prioridade das teogonias e cosmogonias orientais e dos empréstimos do Oriente à Grécia Antiga: supomo-la satisfatoriamente resolvida, não obstante os últimos assomos de uma intransigência injustificável, em particular, do lado dos historiadores da filosofia, aos quais devia ocorrer que a solução afirmativa do problema não implica de modo nenhum que a filosofia grega seja de origem oriental, mas tão-só que a descoberta do Oriente pela Grécia já faz parte do movimento instituidor da mesma filosofia. Que os poetas se antecipem, não é novidade surpreendente. A verdade, portanto, é que na sucessão quaternária, descoberta em textos hititas do segundo milênio, Alalu-Anu-Kumarbi-Teshub, há muito que se reconheceu que os três últimos correspondem à sucessão ternária da teogonia hesiódica, Úrano-Crono-Zeus; e se for certo, como parece, que Alalu designa algo que, de longe ou de perto, se aproxima de «águas primordiais», claramente a descoberto fica o «modelo» da teogonia, tão breve quão vagamente indicada pelos discutidíssimos versos do Ludíbrio de Zeus.