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Krishna

Krishna


Heinrich Zimmer, em seu volumoso "Filosofias da Índia (Palas Athena, 1986), nos apresenta Krishna através de uma admirável síntese do Bhagavad Gita, de onde apresentamos este excerto: "Neste momento crítico, seu cocheiro falou transmitindo-lhe coragem. As palavras proferidas nesta heróica circunstância, na iminência da mais extraordinária batalha na história épica da índia, receberam o nome de Bhagavad Gita, "A Canção do Bem-aventurado Senhor", pois o cocheiro não era outro senão o deus Krishna, encarnação do Criador, Conservador e Destruidor do mundo. A revelação foi dada por um amigo para outro amigo, pelo jovem deus a seu companheiro, o príncipe Arjuna. Era uma doutrina exclusiva, aristocrática, pois o deus Krishna — divina partícula da sagrada essência supramundana que tinha descido à terra para a salvação da humanidade — era, ele próprio, um exterminador de demônios e, portanto, um herói épico, ao passo que o nobre jovem, a quem foram dirigidas as palavras quando do seu desespero por não saber o que fazer (impotente, no momento crucial de sua carreira, em determinar qual seria o seu dharma, a conduta correta), era a mais fina flor da cavalaria hindu do período épico. Foi por simpatia a este jovem rei destronado, que o formoso e escuro Krishna se tornou seu conselheiro, assumindo o papel um tanto alegórico de auriga, quando Arjuna estava em vias de entrar na batalha para reconquistar seu trono usurpado e obter a soberania do território da índia. Krishna não quis apenas desempenhar o papel de mentor espiritual de seu amigo; aproveitou este dramático momento para também proclamar a toda a humanidade sua doutrina de salvação do mundo — conhecida como "yoga da Ação Desinteressada" (karma-yoga) — e tudo que ela implica como auto-entrega e devoção (bhakti) ao Senhor, que é idêntico ao Eu que reside no interior de todos. A doutrina é "muito difícil de compreender", esta é uma advertência continuamente enfatizada. Por exemplo: "O princípio mais íntimo da natureza humana (chamado 'possuidor de um organismo': dehin, saririn) é ¡manifestó, impensável, imutável (...) Uma pessoa contempla este Eu como a uma maravilha. Outro fala Dele como de uma maravilha. Um outro ainda ouve-e-aprende a Seu respeito como de uma maravilha (ao ser instruído na sagrada tradição esotérica por um guru). Porém, embora tenham ouvido e aprendido, ninguém compreende realmente o que Ele é."

  • Krishna — Wikipédia
  • Krishna

Mircea Eliade

Excertos de "História das Crenças e das Idéias Religiosas".

Cumpre-nos, porém, acrescentar de imediato que o poema representa uma síntese grandiosa, consideravelmente mais rica que a tradição escatológica indo-européia a que ele dá continuidade. Ao descrever o aniquilamento das massas humanas ilimitadas e as catástrofes telúricas que se seguiram, o Mahâbhârata recorre às fulgurantes imagens dos Purânas. Mais importantes são as explicações e as inovações teológicas. A idéia "messiânica" do avatara está exposta com energia e vigor. Na famosa teofania da Bhagavad Gita (XI, 12 s.), Krishna revela-se a Arjuna como encarnação de Vishnu. Como já se observou4, essa teofania constitui também um pralaya, que de certa forma antecipa o "fim do mundo" descrito nos últimos cantos da epopéia. Por outro lado, a revelação de Krishna (-Vishnu) como Senhor do pralaya é prenhe de conseqüências teológicas e metafísicas. Efetivamente, por trás dos acontecimentos dramáticos que constituem a trama do Mahâbhârata, deixam-se perceber a oposição e a complementaridade de Vishnu (Krishna) e Shiva. A função "deletéria" deste último é contrabalançada pelo papel "criador" de Vishnu (-Krishna). Quando um desses deuses — ou um dos seus representantes — está presente numa ação, o outro se acha ausente. Mas Vishnu (-Krishna) também é o autor de "destruições" e "ressurreições". Além disso, a epopéia e os Purâreas põem em relevo o aspecto negativo desse deus (Nos Purânas, Vishnu costuma ser descrito como selvagem, perigoso, irresponsável, "louco"; em contrapartida, Shiva é apresentado muitas vezes como aquele que consegue pacificá-lo. Cf. os textos citados por David Kinsley, "Trough the Looking Glass", pp. 276 s.).

Isso equivale a dizer que Vishnu, na qualidade de Ser supremo, é a realidade última; por conseguinte, governa tanto a criação como a destruição dos mundos. Está além do bem e do mal, como o estão, aliás, todos os deuses. Porque "a virtude e o pecado existem, ó Rei, unicamente entre os homens" (XII, 238, 28). Nos ambientes dos iogues e dos contemplativos, a idéia era familiar desde a época dos Upanixades. O Mahâbhârata, no entanto — mais exatamente, em primeiro lugar, a Bhagavad Gita —, a torna acessível, e portanto popular, a todos os níveis da sociedade indiana. Ao mesmo tempo em que exalta Vishnu como o Ser supremo, o poema sublinha a complementaridade de Shiva e Vishnu (Para os diferentes aspectos dessa complementaridade, cf. J. Gonda, Vishnuism and Shivaism, pp. 87 s). Desse ponto de vista, o Mahâbhârata pode ser considerado a pedra angular do hinduísmo. De fato, esses dois deuses, juntamente com a Grande Deusa (shakti, Kâlí, Durgâ), dominaram o hinduísmo desde os primeiros séculos da nossa era até hoje.

A complementaridade ShivaVishnu corresponde ãt certa forma à complementaridade das funções antagônicas específicas aos grandes deuses (criatividade/destruição etc). Compreender essa estrutura da divindade equivale a uma revelação, e constitui também o modelo que se deve seguir para obter a libertação. Com efeito, o Mahâbhârata descreve e exalta, por um lado, a luta entre o Bem e o Mal, dharma e adharma, luta que adquire o peso de uma norma universal, pois rege a vida cósmica, a sociedade e a existência pessoal; mas, por outro lado, o poema lembra que a realidade última — o Brahman-atman dos Upanixades — está além do par dharma/adharma e de qualquer outra dicotomia. Em outras palavras, a libertação implica a compreensão das relações entre os dois "modos" do real: a realidade imediata, isto é, historicamente condicionada, e a realidade última. O monismo upanixádico havia negado a validez da realidade imediata. O Mahâbhârata, sobretudo nos seus trechos didáticos, propõe uma doutrina mais ampla: de uma parte, neles se reafirma o monismo upanixádico, tingido de experiências teístas (vishnuítas); de outra parte, aceita-se toda solução soteriológica que não é explicitamente contrária à tradição das escrituras.