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id da página: 6888 Epístola sobre o estado de infância

Epístola Estado Infância

Epístola sobre o estado de infância

Henry Corbin: Tradução do persa

I. Esta "Epístola" nos oferece um segundo exemplo do "diálogo interior" travado com um shaykh anônimo, mas cujo diálogo anterior (Tratado XI) já nos sugeriu quem deveríamos reconhecer nele. De imediato, esta epístola exige dois esclarecimentos sobre: 1) a pessoa do shaykh que é o interlocutor; 2) o "estado de infância" que é o próprio objeto da epístola.

1) Mosannifak, o comentarista da "Epístola das altas torres" (acima Tratado X), oportunamente nos lembrou que o Anjo Gabriel, Anjo da humanidade, ao mesmo tempo Espírito Santo e Inteligência agente, é ele mesmo o shaykh e guia (morshid) dos Ishraqiyun, que não têm o costume de reivindicar a ascendência de um mestre humano deste mundo (eles estão no mesmo caso daqueles dos sufis que se chamam em persa os Owaysis). É por essa razão que em seus relatos de iniciação onde se produz o "encontro com o Anjo", o Shaykh al-Ishraq designa este como um shaykh, ou em persa como um pir, um sábio, um mestre espiritual. Esta característica da espiritualidade dos Ishraqiyun nos permitiu, no relato precedente, identificar na pessoa do "shaykh" um substituto do Anjo. Anônimo, porque ele é o shaykh al-ghayb, ostad-e ghaybi, o mestre pessoal secreto, cujo nome somente o místico sabe.

De novo, o shaykh da presente Epístola nos aparece bem como este guia pessoal interior, mas há uma complicação, algo como um desdobramento de sua pessoa. O autor nos conta como, tendo cometido a imprudência de romper a "disciplina do arcano" falando imprudentemente com um profano que se impôs como companheiro de jornada, ele perdeu o rastro de seu shaykh. Impossível de reencontrar este. Profunda foi a sua angústia; ele o procurou por toda parte. Ora, eis que um dia ele penetra em um khangah. Ele encontra aí um Sábio (pir) a quem ele relata seu infortúnio. Este o admoesta, mas o fará reencontrar seu shaykh. Qual é a relação entre os dois shaykhs, cuja intervenção responde certamente a uma intenção profunda do autor?

Dois detalhes do episódio (§ 4) são para se notar. É em um khangah que o narrador encontra o Sábio que vai fazê-lo reencontrar seu shaykh pessoal. Ora, os textos precedentes nos mostraram o sentido deste motivo do khangah. É o microcosmo como cidade pessoal, o santuário interior que é o lugar da presença mística do Anjo. Aqui estamos nós de volta à situação descrita em um relato precedente (o Tratado VII). Além disso, o narrador precisa que na frontaria deste khangah estava pendurado um manto (uma khirqa) de uma dupla cor: uma metade era branca, a outra metade era preta. Há aí manifestamente um simbolismo que é não somente um lembrete marcante, mas o equivalente do simbolismo das duas asas de Gabriel: uma asa de luz e uma asa escurecida (cf. igualmente Tratado VII). O manto pendurado na frontaria do khangah é assim uma alusão que conduz o leitor a identificar o Sábio presente no khangah. Mas se se trata bem de Gabriel, o Anjo-Espírito Santo que é o shaykh dos Ishraqiyun, quem é então o outro shaykh, o mestre pessoal do narrador, aquele que o Sábio com o manto branco e preto permitirá ao discípulo imprudente reencontrar?

Aqui ainda, são os dados dispersos no conjunto da obra de Sohravardi que nos colocam no caminho. Há uma figura que desempenha um grande papel em sua filosofia e em sua espiritualidade, a saber, a da "Natureza Perfeita" (al-Tiba' al-tamm). Noção hermetista, certamente. No relato de êxtase de Hermes, é ela que é invocada para salvá-lo dos perigos. Insistiu-se longamente em outro lugar sobre os textos hermetistas e sohravardianos onde aparece esta figura. Em suma, ela é "o Anjo pessoal do filósofo", não simplesmente o que se designa em outro lugar como o "anjo guardião", mas a contraparte celeste, o Gêmeo ou alter ego celeste do homem terrestre (cf. a noção mazdeísta de Fravarti). Sohravardi se dirige a ela em seu salmo dizendo-lhe: "Tu és meu pai espiritual e minha criança espiritual." Há como uma responsabilidade compartilhada entre o ser humano e seu Anjo. Ora, há um laço estreito entre Gabriel-Espírito Santo como Anjo da espécie humana (Rabb al-nff al-insani) e esta Natureza Perfeita, um laço tão estreito mesmo que os comentaristas hesitaram e confundiram mais de uma vez.

O laço é sutil de fato, mas é inequívoco. Mostrou-se em outro lugar que a Natureza Perfeita, como anjo pessoal do filósofo, é a individuação da relação do Anjo-Espírito Santo com cada um dos seus, cada um daqueles dos quais ele é o morshid, o guia. Há entre o Anjo-Espírito Santo, Gabriel, e a Natureza Perfeita a mesma relação que entre a comunidade dos Ishraqiyun e cada um deles tomado à parte. Gabriel é o morshid dos Ishraqiyun; cada um deles tem sua Natureza Perfeita, o anjo pessoal que o guia. No fim do "Livro dos Templos" (acima Tratado II, cf. n. 115), a Natureza Perfeita nos apareceu como o Paracleto pessoal que o Espírito Santo envia a cada um dos seus, cada um daqueles de quem ele é o "pai" (cf. também Tratado V). Compreende-se então ainda melhor que, na presente Epístola, seja o Anjo-Espírito Santo que permita ao discípulo extraviado reencontrar sua Natureza Perfeita. A imprudência do discípulo, os reproches formulados pelo shaykh, sugerem admiravelmente como se perde o "contato com o Anjo" e qual penalidade está ligada a essa perda. A identidade e a relação dos dois shaykhs nos aparecem então com uma perfeita coerência. O shaykh que é o iniciador do discípulo, é sua Natureza Perfeita. Isso se harmoniza perfeitamente com a visão que Hermes teve de sua Natureza Perfeita e que Sohravardi relata em outro lugar: a Natureza Perfeita é o anjo "que projeta os conhecimentos na alma do filósofo". O Sábio que, no khangah, a faz encontrar ou reencontrar, é o Anjo-Espírito Santo, interlocutor dos relatos de iniciação precedentes. A Natureza Perfeita é "enviada" por ele. Não há de forma alguma aqui um simples detalhe de composição literária. É de toda a estrutura da cosmologia e da antropologia mística do Ishraq que este "detalhe" releva.

2) Há por outro lado o título do presente tratado: "Epístola sobre o estado de infância". Muito rapidamente percebe-se que não se trata da infância segundo o estado civil, nem dos colegas de jogo de um escolar. Trata-se, desde o início da Epístola, da infância no sentido espiritual, da despreocupada ignorância que precede o engajamento do homem interior no Caminho. O adulto profano não é neste mundo senão uma criança em relação ao Caminho espiritual. As crianças que aqui vão se instruir junto ao shaykh são as potências secretas da alma que estão sempre à frente das atitudes da personalidade consciente. O que é o Conhecimento que essas crianças querem adquirir? Elas mesmas não o sabem. É preciso interrogar o seu shaykh. Por que, então, não se pôr em busca deste? (§ 1 e 2). Este shaykh, o narrador o encontra na "campanha deserta", lá mesmo onde se produziu anteriormente o "encontro com o Anjo" (Tratado VII). O detalhe deve ser notado com cuidado; ele confirma o que foi dito acima sobre a identidade do shaykh. Da mesma forma ainda que acima (no Tratado VII), o que o shaykh começa por ensinar a seu discípulo, é a ler a tábua sobre a qual está escrito o alfabeto filosófico, ou seja, a ciência cabalística das letras.

Pareceria que se tem assim uma explicação suficiente do estado de infância. Esta infância marca, como é normal, o início, o primeiro despertar para o Conhecimento. No entanto, nossa Epístola esconde outras passagens que nos incitam a buscar um sentido mais profundo, menos evidente, deste conceito de infância, ou melhor, um sentido que — completa e amplifica o sentido das primeiras linhas da Epístola. No decorrer do diálogo, uma parábola vai levar a uma digressão sobre a hermenêutica das visões em sonho (cf. todo o § 13). O shaykh comenta a lei de analogia a contrario. O que a alma contempla em sonho, são de fato os eventos no outro mundo, e o que ela contempla, é a imagem invertida do evento neste mundo. A visão de uma morte anuncia que alguém morre para este mundo e nasce para o outro mundo. Assim, é explicitamente mencionado nesta ocasião o fato da segunda nascença. Nascer neste mundo, é nascer para ser a presa do tempo cronológico, envelhecer e morrer. Nascer para o outro mundo, não é para passar por um crescimento que leva à velhice e à morte, mas para guardar para sempre o status do renovatus in novam infantiam (cf. as n. 21 e 22, é o tema do Puer aeternus). É o gesto radical do mercador (§ 12), herói da parábola, que significa a morte mística para este mundo e a nova nascença para o outro mundo, e por esta ser livre para o além da morte, para sair vivo deste mundo, pois a ressurreição chama os vivos, e não os mortos espirituais.

Temos aqui o desenvolvimento que legitima integralmente o título da Epístola (caso contrário, este título só diria respeito às primeiras linhas), aprofundando o conceito de "infância". Uma confirmação vem logo depois (§ 14, cf. n. 27). Doravante o narrador lê com facilidade e prazer a tábua (os segredos da ciência mística das letras) que ele decifrava com dificuldade no início. Seu shaykh lhe diz que ele se tornou um adulto. Certamente, mas aplicando a lei de analogia invertida que nos foi lembrada, algumas linhas antes, a digressão sobre a hermenêutica dos sonhos, que não figura lá por acaso, compreendemos que o adulto espiritual é precisamente a criança no céu da alma (cf. acima o endereço à Natureza Perfeita: Tu és meu pai espiritual e tu és minha criança espiritual). Em contrapartida, o adulto, no sentido profano deste mundo, ainda é apenas uma criança, ou mesmo um aborto, em relação ao mundo espiritual, enquanto ele ignorar tudo. As intenções de Sohravardi são sempre sutis e discretas. Ele nos ensina não a pressionar seus textos, mas a ler entre as linhas.

II. Quanto ao ensinamento dispensado pelo shaykh, é importante seguir bem sua progressão, pois é ela que motiva a intervenção das parábolas. Estas não estão de forma alguma aí para satisfazer um "dom de contador de histórias". Nunca há nada de arbitrário em Sohravardi. Estas parábolas virão como uma ilustração necessária do ensinamento do shaykh.

A pedagogia espiritual do shaykh é marcada por três etapas, cada uma tipificada por um símbolo (§ 6, cf. n. 8 a 10). 1) Há o exemplo da pirilampo que crê ser ela mesma a fonte da luz que exala. 2) Há o exemplo do boi marinho que acentua pesadamente a pretensão da pirilampo: porque a Lua é invisível durante o dia, ele reprocha ao Sol de roubar da Lua sua luz. 3) Então, uma vez compreendido o erro da pirilampo e do boi, deve se cumprir o retorno à montanha psicocósmica de Qaf, à árvore Tuba na qual está o ninho de Simorgh. Estes últimos motivos já encontraram lugar longamente no "Relato do arcanjo empurpurado" (Tratado VI; eles reaparecerão abaixo no prólogo do Tratado XIV. Queira-se, por favor, remeter-se a um e a outro). O simbolismo das fases da Lua, já se viu vários exemplos, tipifica os estados espirituais sucessivos do místico que é uma "Lua no céu do tawhid" (cf. Tratado X). Invisível para os homens, quando ela está mais próxima da árvore Tuba, a Lua, como um espelho perfeito, está então tão totalmente investida da luz que lhe vem do Sol, que lhe acontece de exclamar: "Eu sou o Sol" (cf. n. 10). Esta exposição dá lugar a uma lição de astronomia (§ 8) que se traduz pelo plano de uma cartografia celeste complicada, cujas indicações dadas pelo autor são suficientemente detalhadas para que cada leitor possa construir a figura a seu gosto. Aliás, trata-se, no total, de uma astronomia cujo sentido oculto visa sempre "as Luas no céu do tawhid" ("Ver os céus com o olho interior", já ensinava o diálogo precedente, § 9). O que foi condensado abaixo na n. 13 não faz senão antecipar o que os § 9 e 10 desenvolvem imediatamente depois, propondo o caso exemplar de Abu Yazid Bastami, e se dirigindo a "aquele que tem a alma de um verdadeiro qalandar" (cf. a n. 16).

É esta evocação do caso de Abu Yazid e do verdadeiro qalandar que, pela transição do § 10, motiva as duas grandes parábolas dos § 11-13. Os dois exemplos que elas propõem são o inverso um do outro, em resposta à pergunta do discípulo: "Quando (o renunciante) não possui mais nada, como ele provê às necessidades de sua vida?" Há primeiro a parábola do rico personagem que se pôs a construir um palácio magnífico. O Anjo da morte se apresenta cedo demais para o seu gosto; ele tenta em vão obter um prazo. Ele morre sem ter renunciado a seu palácio e, por falta desse renunciamento, sua própria construção permanece para sempre inacabada (mesmo se outros terminam materialmente o edifício) (§ 11). Em contrapartida, eis um mercador que, após ter enfrentado uma terrível tempestade no curso de sua navegação, joga de bom grado por cima do bordo toda sua bagagem, quando ele chega ao porto (§ 12). É que jogar sua bagagem por cima do bordo em plena tempestade, é um ato ao qual se consente para salvar a sua vida neste mundo, nada mais. Mas jogar tudo por cima do bordo, enquanto se está nas águas calmas do porto e se poderia tudo conservar, é um ato que se realiza para salvar e tornar livre a sua alma. Assim, o shaykh declara que o mercador em questão, ele, realmente efetuou e terminou a viagem, enquanto o construtor, que mesmo em presença do Anjo da morte não consentiu em um tal ato, deixou a sua própria construção inacabada (cf. n. 23-24).

É o gesto heroico do mercador que provoca a digressão sobre a hermenêutica dos sonhos pela via da analogia invertida, sobre a qual se insistiu acima. Aquele que renuncia a algo deste mundo encontra eo ipso algo do outro mundo, a lei deste equilíbrio sendo constante. Quando ele tiver rejeitado a totalidade deste mundo, ele será um "separado", um perfeito "anacoreta espiritual", um vivo do outro mundo (§ 13). A balança é rigorosa: é ela que nos desvendou acima o sentido do Puer aeternus como sendo o "adulto" no sentido espiritual (§ 14), enquanto o adulto do mundo profano, segundo o estado civil, ainda é no plano espiritual apenas uma pequena criança. Encontrar-se-á ainda logo depois um outro exemplo desta lei de compensação, no sentido oculto que toma o rejeitar do manto no decorrer das sessões de dança mística (§ 17, cf. n. 36).

O fim do diálogo é precisamente consagrado a explicar o sentido oculto das práticas dos sufis: o concerto espiritual (sama, § 15), a dança mística (§ 16 ss.). Sohravardi parece ter sido particularmente sensível e atento, já foi dito, aos efeitos da experiência musical. Esta marca essencialmente para ele o encontro com o outro mundo, o mundo suprassensível (cf. n. 29-30). No ápice desta experiência, já não é a orelha exterior que escuta, mas a alma em si mesma. Lembrar-se-á das alusões do tratado precedente (Tratado XI, n. 28) aos sentidos espirituais, sentidos do suprassensível: a vista interior, a audição interior, etc. É a esta audição transfigurada que a experiência musical de Sohravardi leva. Ele encontra, neste ponto, a experiência do grande emotivo que foi Shaykh Ruzbehan Baqli Shirazi. O autor lembrou em nota um dos textos mais marcantes deste (cf. n. 31).

Finalmente, toda a parte final do diálogo (§ 20) contém um severo aviso sobre essas práticas. O aviso se aplica a todos os pseudomísticos, aos da época, como àqueles que proliferam em nossos dias. Não basta vestir-se de roupas azuis (cf. n. 43) para se tornar um sufi. Não basta pôr-se a dançar para encontrar o êxtase. Na verdade, é tudo o inverso. O shaykh nos avisa disso: "É a dança que é o produto do estado interior da alma; não é o estado interior da alma que é o produto da dança." Em outras palavras, música e dança são os meios de expressão do êxtase interior do homem; eles não são meios para adquirir o êxtase interior. Se se pretende escravizá-los a esse fim, comete-se então a falsificação e a impostura do que um mestre cabalista denomina muito justamente o êxtase "provocado". Este é descrito "como um esforço consciente para chegar a um estado extático para fins pessoais: não se entrega à contemplação a não ser para provocar o êxtase; o que deveria ter sido um efeito secundário, torna-se o objetivo principal. Se assalta a cidadela do êxtase".

E é a este assalto que se entregam todos os pseudomísticos que proliferam em nossos dias, recorrendo a todos os meios, incluindo drogas de toda espécie. Mais grave ainda, sábios, homens de laboratório, fizeram pesquisas (com o apoio de eletroencefalogramas) para mostrar que esses pseudomísticos com êxtases "provocados" chegavam aos mesmos resultados que os místicos autênticos. Eles concedem, certamente, que estes últimos chegam ao resultado sem empregar os meios usados por seus duvidosos emuladores. Eles esquecem apenas uma coisa: é que, precisamente, os místicos autênticos não estão em busca desses efeitos. Esses efeitos nunca foram seu objetivo. Que esta Epístola de Sohravardi possa lembrar a todos os pseudomísticos e pseudoesoteristas que não se assalta a "cidadela do êxtase".


Excertos: