"Os nomes de Jesus"
Excertos traduzidos por C. Folch Gomes do LIVRO SÉTIMO DAS ETIMOLOGIAS (P.L. 82, 263-267)
De muitas maneiras Cristo é designado nas divinas Escrituras, pois sendo o Filho unigênito de Deus, igual ao Pai, tomou nossa natureza de servo para nos salvar: assim, uns nomes convêm a Cristo em razão da divindade e outros, em razão da natureza humana que assumiu.
É chamado, em primeiro lugar, Cristo, isto é, ungido. Era costume, entre os judeus, consagrar o unguento com que ungiam os reis e sacerdotes; e assim como agora a púrpura é o distintivo real, outrora a unção conferia aos reis seu nome e autoridade, e por isso se diziam, em grego, "cristos", isto é, ungidos. E este nome, espiritualmente, se translada ao Senhor, que foi ungido em espírito por seu Pai, como se lê nos Atos dos Apóstolos: "aliaram-se na cidade contra teu Santo Filho, que ungiste" Não, certamente, com o óleo natural, mas com o unguento invisível da graça. Assim, o nome de Cristo, à diferença do nome Jesus Cristo, não é exclusivo do Salvador, mas também nome comum de dignidade. O vocábulo "Cristo", porém, esteve em uso somente naquele povo que anunciou o "Messias", palavra que em grego se traduz como "Cristo", e na língua latina, "Ungido".
A palavra hebraica Jesus, em grego "Soter", se traduz em latim por Salvador, porque veio para salvar a todos os povos. E é esta etimologia que c evangelista indica quando diz: "chamarás seu nome Jesus, porque ele salvará seu povo". Como Cristo significa Rei, assim Jesus significa Salvador. Portanto não foi um rei qualquer que nos salvou, mas o rei Salvador; e este vocábulo de Salvador, embora pudesse tê-lo a língua latina (como quando quis a teve), antes não o tinha.
Emanuel, em hebraico, significa Deus conosco, porque Deus nasceu da Virgem e revestiu a carne de nossa mortalidade para nos abrir o caminho do céu. Os nomes que se referem à substância da divindade são Deus e Senhor. Diz-se Deus, por sua consubstancialidade com o Pai; diz-se Senhor, pelo domínio sobre as criaturas.
Diz-se Deus e homem, porque Verbo e carne. Daí também ser dito gerado duas vezes, pois o Pai o gerou na eternidade, sem mãe e a Mãe o gerou sem pai no tempo.
Unigênito chama-se ele segundo a excelência da divindade, na qual não teve irmãos; Primogênito, segundo a humanidade assumida, pela qual teve irmãos na adoção da graça.
Homousios ao Pai diz-se pela unidade de substância; ousia significando essência, e hómos, a mesma, e consequentemente o vocábulo significa consubstancial, conforme a Escritura: "o Pai e eu somos uma mesma coisa", isto é, somos consubstanciais. Embora esta palavra não se ache nas Escrituras, ao tratar-se da Trindade há razão para ser usada. Como aliás tampouco se diz nas Escrituras "ingênito do Pai", e ninguém duvida que seja preciso dizer-se e confessar-se o Cristo assim. "Homoúsios" se diz pela semelhança de substância; porque tal é Deus, tal é sua imagem, invisível Deus, invisível sua imagem.
Princípio chama-se, porque dele derivam todas as coisas, e antes dele nada existiu.
Fim, porque se dignou nascer e morrer no fim dos tempos, e também porque se reservou o Juízo Final, e ainda a ele dirigimos nossas obras como a um fim, não havendo além dele finalidade ulterior a que possamos referi-las.
Boca de Deus chama-se porque é seu Verbo, e como pelas palavras se conhece a língua que as prefere, assim, em lugar de Verbo, dizemos Boca de Deus, porque o costume é que as palavras se profiram oralmente.
Verbo se diz, porque o Pai tudo fez e ordenou por ele. Verdade, porque não engana, mas cumpre suas promessas. Vida, porque nos criou. Imagem, por sua semelhança de identidade com o Pai. Figura, porque na forma de servo refletiu, com suas obras e virtudes, a imagem e imensa grandeza do Pai. Mão de Deus, porque por ele se fizeram todas as coisas; e Mão direita, porque fez a totalidade da criação. Braço, porque tudo sustenta. Virtude, porque comunica todo o poder do Pai, contém, rege e governa o céu, a terra e todas as criaturas. Sabedoria, porque revela todos os mistérios da ciência, e os arcanos do saber. E embora também o Pai e o Espírito Santo sejam sabedoria, virtude, luz e resplendor, estes nomes singularmente se acomodam ao Filho. Esplendor, chama-se porque manifesta o Pai. Lume, porque ilumina. Luz, porque ilumina a alma para a contemplação da verdade. Sol, por seus luminosos raios. Oriente, porque nos ilumina, ilustra e orienta para a vida eterna. Fonte, porque é origem de todas as coisas, e refrigério de nossa sede. Alfa e ômega: Alfa, porque ao alfa nenhuma letra precede, sendo a primeira de todas: assim o Filho de Deus é o princípio, como disse aos judeus, e por boca de são João, no Apocalipse: "Eu sou o Alfa e o ômega: o princípio e o fim". O primeiro, porque antes dele não houve nada, e o fim, porque se reserva o Juízo final de todas as criaturas. Mediador, porque o é entre Deus e os homens, a fim de conduzir o homem a Deus; daí os gregos chamarem-no "Mesites". Paráclito, porque é advogado para interceder ante o Pai por nós, como diz são João: "Temos um advogado ante o Pai, Jesus Cristo", e o grego "paráclito" se traduz em latim "advocatus", nome que se aplica ao Filho e ao Espírito Santo, conforme diz o Senhor no Evangelho: "rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito". Intercessor chama-se porque cuida de remover nossas culpas e lavar nossos pecados. Esposo, porque desceu do céu e se conjugou à Igreja, a fim de serem dois numa só carne, na paz do Novo Testamento. Anjo, porque anunciou a vontade do Pai e sua. Daí o profeta chamá-lo "anjo do grande conselho": é Deus o Senhor dos anjos. Enviado, porque apareceu no mundo e se fez carne, conforme a palavra: "saí do Pai e vim ao mundo"5. Homem, pois nasceu; Profeta, pois vaticinou; Sacerdote, pois nos ensina; Nazareno, pelo lugar de seu nascimento, e também porque é santo e puro, sem a mácula do pecado.
Outros nomes menores recebe ainda Jesus Cristo, para seu mais fácil conhecimento.
Diz-se Pão, pois é carne; Videira, pois nos remiu com seu sangue; Flor, enquanto é eleito; Via, enquanto nos leva ao céu; Porta, enquanto nos introduz diante de Deus; Monte, por sua fortaleza; Rocha, por sua solidez; Pedra angular, porque uniu os muros da gentilidade e do judaísmo no mesmo edifício de sua Igreja, ou porque pacificou em si os anjos e os homens. Pedra de tropeço, porque em sua humildade tropeçaram os incrédulos, convertendo-se para eles em pedra de escândalo, conforme a palavra do Apóstolo: "é escândalo para os judeus". Fundamento, porque nele se firma nossa fé, e se consolida a Igreja católica. Cordeiro por sua inocência; Ovelha, por sua paciência; Leão, por sua soberania e fortaleza; Serpente, por sua morte e também por sua prudência; Larva, porque ressuscitou; Águia, porque ressuscitado subiu aos céus.
E não é de sé estranhar que se chame o Salvador com esses humildes vocábulos, pois se dignou descer à nossa passível natureza, assumir a humildade de nossa carne. Sendo incriado e eterno como o Pai, tomou a forma de servo e se fez homem por nossa salvação. Assim, uns nomes lhe convêm segundo a divindade; outros, segundo a humanidade que assumiu.
Segundo a divindade, ele mesmo diz: "meu Pai e eu somos a mesma coisa". Mas segundo a humanidade assumida afirma: "meu Pai é maior que eu". Ora os que não entendem transpõem para a divindade os nomes que convêm a nosso Senhor por sua humildade, e os nomes de pessoa à natureza, errando na fé.
De tal maneira assumiu o Filho de Deus a humana natureza, que das duas naturezas resultasse apenas uma pessoa. Assim, embora semente o homem tenha sofrido na cruz, foi Deus quem dizemos ter sefrido, por causa da unidade de pessoa. Donde, a Escritura: "Se o conhecessem, nunca sacrificariam o Senhor da glória". Nós confessamos que o Filho de Deus foi crucificado, não na virtude da divindade, mas na fraqueza da humanidade, não na impassibilidade da divina natureza, mas na humanidade que assumiu.