Uma liturgia xiita do Graal
Introdução e Contexto Histórico
- A Cavalaria Espiritual (Fotowwat): O ritual está ligado à fotowwat (ou javânmardî em persa), um conceito que se traduz como "cavalaria espiritual". Ela representa um estado intermediário entre o místico sufi e o fiel comum, e tem suas raízes no xiismo esotérico.
- O Rituel da Taça: A iniciação à fotowwat envolve um "ritual da taça" instituído pelo próprio Profeta Maomé, que, em um ato sacramental, misturou três pitadas de sal em uma taça de água para simbolizar a tríade espiritual do Islã: a Sharî'at (a lei literal), a Tarîqat (o caminho místico) e a Haqîqat (a gnose realizada).
- As Origens Pré-Islâmicas: Uma tradição alternativa menciona uma antiga cavalaria que praticava um ritual similar com uma taça de vinho, liderada por Abû Jahl, tio e adversário do Profeta. Abul-Khattâb, que mais tarde se tornaria a figura central do ritual, também está ligado a este rito pré-islâmico.
O Gnosticismo Xiita Nosairi e o Drama de Abul-Khattâb
- Sincronismo e Doutrina: O ritual é encontrado no contexto do nosairismo, uma escola de gnose xiita que os orientalistas frequentemente classificam como "sincrética", pois seu calendário litúrgico inclui festas xiitas, mazdeístas e cristãs. No entanto, os nosairis veem isso como a percepção de que "várias lâmpadas são acesas por uma mesma luz".
- A Teologia Apopática e a Pentade Divina: A teologia nosairi é radicalmente apofática, ou seja, a divindade absoluta é inacessível e inefável. A divindade se manifesta através de um grupo pentádico de cinco pessoas teofânicas, conhecidas como os "Cinco Companheiros do Manto": Maomé, Fátima, ‘Alî, Hasan e Hosayn.
- As "Cúpulas" Históricas: A história sagrada é vista como uma sucessão de "cúpulas" (qibâb) ou ciclos de manifestação, como a cúpula adâmica, a cúpula maometana e, notavelmente, as cúpulas persas (bahmanîya) que servem de ligação entre o mazdeísmo e o Islã. As figuras de cada cúpula são "homólogas" umas às outras.
- O Drama do "Navio Quebrado": Abul-Khattâb, uma figura central e trágica do século VIII, foi um confidente dos imãs, mas foi publicamente desaprovado pelo Imã Ja'far. A gnose nosairi interpreta este evento através da parábola do "navio quebrado" do Alcorão: o Imã Ja'far, como o misterioso guia de Moisés, sacrificou Abul-Khattâb, o "navio", para que ele não caísse nas mãos do "rei" (o governador abássida), protegendo assim o segredo esotérico.
O Ritual da Taça de Vinho do Malakut
- O Cenário e os Participantes: O ritual é narrado por um discípulo chamado Abû Hârûn e se passa na presença de Abul-Khattâb e setenta de seus seguidores, incluindo Mûsâ ibn Ashyam. O número setenta evoca os mártires xiitas na mesquita de Kûfa.
- O Vinho do Malakut: Abul-Khattâb se refere ao líquido na taça como o "vinho do Malakut", ou seja, o "vinho do mundo do Anjo", distinto do vinho profano e do "sangue de Iblîs" (Ahriman). Ele representa o puro conhecimento e é a mesma bebida que Deus reservou para seus amigos no paraíso.
- A Ascensão do Graal: Após os discípulos beberem da taça, que milagrosamente não diminui de conteúdo, Abul-Khattâb a eleva. A taça sobe lentamente em um círculo até atingir uma "cúpula vermelha" onde o Imã Ja'far se manifesta, revelando o segredo do vinho aos adeptos.
- A Liturgia da Comunhão Cósmica: A taça desce novamente, desta vez vazia, para simbolizar que os "Invisíveis" de todas as cúpulas passadas – persas, adâmicas, etc. – participaram do ritual no mesmo instante. O ritual transcende o tempo cronológico e estabelece uma comunhão entre todos os gnósticos de todas as épocas.
- A Homologia de Hormoz: Abul-Khattâb explica que a taça é a mesma de Tahmuras, o "emir das Abelhas" (equivalente do Imã ‘Alî na cúpula persa), e que ele próprio foi Hormoz, um dos personagens da cúpula persa, que bebeu da mesma taça.
Conclusão e a Ética da Gnose
- A Conquista da Gnose: Ao beber do vinho do Malakut, os discípulos não apenas obtêm a gnose, mas também a capacidade de entender a "língua dos pássaros" (Mantiq al-tayr), um dom comparável ao do Rei Salomão e que representa a compreensão dos segredos do mundo espiritual.
- O Pecado da Insuficiência: Os discípulos questionam por que alguns precisam retornar a este mundo. Abul-Khattâb responde que a causa é a insuficiência (taqsîr) em seu dever de ser, especialmente a falta de amor fraterno. A mais grave das insuficiências é a negligência do amor e da caridade para com os irmãos, o que leva ao "recomeço" (takrîr) neste mundo.
- A Verdadeira Cavalaria: Assim, o texto conclui com uma lição ética: a gnose não é um fim em si mesma, mas um meio para a virtude e o amor. A verdadeira fotowwat não se manifesta apenas em rituais, mas principalmente na prática da caridade e da compaixão, que são a única forma de evitar o sofrimento do recomeço.
Excertos: