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id da página: 545 Ananda Coomaraswamy ARTIGOS SELETOS DE METAFÍSICA Ananda Coomaraswamy »  Coomaraswamy Metafísica

Vedanta2

O VEDANTA: EU SOUATMANEGO

O Vedanta dá por estabelecida uma onisciência independente de toda fonte de conhecimento externa a si mesma, e uma beatitude independente de toda fonte externa de gozo. Ao dizer «Isso és tu», o Vedanta afirma que o homem está possuído por, e que ele mesmo é, «essa única coisa que quando é conhecida, todas as coisas são conhecidas» e que «só por amor da qual todas as coisas são queridas». Afirma que o homem é desconhecedor deste tesouro oculto dentro de si mesmo porque herdou uma ignorância que é inerente à natureza mesma do veículo psicofísico que identifica erradamente com ele mesmo. O propósito de todo o ensino é dissipar esta ignorância; quando a obscuridade tem sido traspassada não resta nada exceto a Gnose da Luz. Por conseguinte, a técnica da educação é sempre formalmente destrutiva e iconoclasta; não é a transmissão de uma informação senão a educação de um conhecimento latente.

O «grande dito» das Upanishads é, «Isso és tu». «Isso» é aqui, por suposto, o Atman ou Espírito, o Sanctus Spiritus, o pneuma grego, o ruh arábico, o ruah hebreu, o Amon egípcio, o ch'i chinês; o Atman é a essência espiritual, indivisa seja transcendente seja imanente; e por muitas e diferentes que sejam as direções às quais pode estender-se ou desde as quais pode retrair-se, é o motor imutável tanto em sentido intransitivo como em sentido transitivo. Presta-se a todas as modalidades do ser mas ele mesmo jamais torna-se um alguém ou um algo. Isso prescindindo do qual todo o demais é uma vexação — Isso és tu. «Isso», em outras palavras, é o Brahman, ou Deus no sentido geral do Logos ou do Ser, considerado como a fonte universal de todo Ser — expandiente, manifestante e produtivo, fonte de todas as coisas, todas as quais estão «nele» como o finito no infinito, embora não como uma «parte» dele, posto que o infinito não tem partes.

Em sua maior parte, usar-se-á a palavra Atman de agora em diante. Embora este Atman, enquanto isso que sopra e ilumina, é primariamente o «Espírito», porque ele é este Eros divino que é a essência vivificante em todas as coisas e assim seu ser real, a palavra Atman usa-se também reflexivamente para significar «si mesmo» — seja «um mesmo» em todos os sentidos, por grosseiros que sejam, em que a noção possa ser mantida, seja com referência ao Si mesmo ou Pessoa espiritual (o qual é o único sujeito e essência conhecedora de todas as coisas, e deve ser distinguido do «eu» afetado e contingente que é um composto do corpo e de tudo o que se entende por «alma» quando se fala de uma «psicologia»). Dois «si mesmos» muito diferentes estão assim implicados, e tem sido o costume dos tradutores, por conseguinte, traduzir Atman como «si mesmo», impresso seja com um «s» minúsculo seja com um «S» maiúsculo segundo o contexto. A mesma distinção é traçada, por exemplo, por São Bernardo entre o que é minha «propriedade» (proprium) e o que é meu verdadeiro ser (esse). Uma formulação indiana alternativa distingue entre o «Conhecedor do campo» — isto é, o Espírito enquanto o único sujeito conhecedor em todas as coisas e o mesmo em todas — e o «campo», ou corpo-e-alma segundo se tem definido acima (tomado junto com as pradarias dos sentidos e abarcando portanto todas as coisas que podem ser consideradas objetivamente). O Atman ou o Brahman mesmo não pode ser considerado assim: «Como poderias tu conhecer ao Conhecedor do conhecimento?» — ou em outras palavras, como pode a Causa primeira de todas as coisas ser uma delas?

O Atman é indiviso, mas está aparentemente dividido e identificado na variedade pelas diferentes formas de seus veículos, rato ou homem, justamente como o espaço dentro de um jarro está aparentemente signado e é distinguível do espaço fora dele. Neste sentido pode dizer-se que «ele é um como ele é em si mesmo mas muitos como ele é em seus filhos», e que «participando-se a si mesmo, ele preenche estes mundos». Mas isto é somente no sentido em que a luz preenche o espaço enquanto ela mesma permanece sem descontinuidade; a distinção entre umas coisas e outras não depende assim de diferenças na luz senão de diferenças no poder de refletir. Quando o jarro se quebra, quando o vaso da vida se desfaz, então dá-se-se conta de que o que estava aparentemente delimitado não tinha limites e de que «vida» era um significado que não há de ser confundido com «vivo». Dizer que o Atman é assim ao mesmo tempo participado e impartível, «indiviso nas coisas divididas», sem posição local e ao mesmo tempo por todas as partes, é outro modo de afirmar isso com o que se está mais familiarizado como a doutrina da Presença Total.

Ao mesmo tempo, cada uma destas aparentes definições do Espírito representa a atualidade no tempo de uma de suas indefinidamente numerosas possibilidades de manifestação formal. A existência da aparição começa com o nascimento e acaba com a morte; ela jamais pode repetir-se. Nada de Shankara sobrevive exceto um legado. Portanto, embora se possa falar dele como um poder ainda vivo no mundo, o homem tem se tornado uma memória. Por outra parte, para o Espírito gnóstico, o Conhecedor do campo, o Conhecedor de todos os nascimentos, jamais pode haver em nenhum tempo um cessar de ser um conhecimento imediato de todas e de cada uma de suas modalidades, um conhecimento sem antes nem depois (relativo à aparição ou desaparecimento de Shankara do campo de nossa experiência). Segue-se que onde conhecimento e ser, natureza e essência são um e o mesmo, o ser de Shankara não tem nenhum começo e jamais pode cessar. Em outras palavras, há um sentido no qual pode-se falar propriamente de «meu espírito» e de «minha pessoa» assim como do «Espírito» e da «Pessoa», apesar de que Espírito e Pessoa são uma substância perfeitamente simples e sem composição. Voltar-se-á ao significado da «imortalidade» depois, mas por o momento quer-se usar o que se acaba de dizer para explicar o que se entendia por uma distinção não sectária de pontos de vista. Pois, enquanto o erudito de «filosofia» ocidental pensa que o Sankhya e o Vedanta são dois «sistemas» incompatíveis, porque o primeiro ocupa-se da liberação de uma pluralidade de Pessoas e o segundo da liberdade de uma Pessoa Inumerável, nenhuma antinomia tal é visível para o hindu. Isto pode explicar-se assinalando que nos textos Cristãos, «Vós sois todos um em Cristo Jesus» e «Quem quer que está unido ao Senhor é um espírito», os plurais «vós» e «quem quer» representam o ponto de vista do Sankhya e o singular «um, um» o do Vedanta.

A validade de nossa consciência de ser, aparte de toda questão de ser fulano por nome ou por caracteres registráveis, dá-se em consequência por estabelecida. Isto não deve ser confundido com o argumento, «Cogito ergo sum». Que «eu» sinta ou que «eu» pense não é nenhuma prova de que «eu» sou; pois pode-se dizer com o vedantista e o budista que isto é meramente uma presunção, que as «sensações são sentidas» e os «pensamentos são pensados», e que tudo isto é uma parte do «campo» cujo supervisor é o espírito, justamente como se olha uma imagem que é em um sentido uma parte de nós embora não sejamos em nenhum sentido uma parte dela. Em consequência coloca-se a pergunta: «Quem és tu?» «Qual é esse si mesmo ao qual devemos recorrer?». Reconhece-se que «si mesmo» pode ter mais de um significado quando se fala de um «conflito interno»; quando se diz que «o espírito está pronto mas a carne é fraca»; ou quando se diz, com a Bhagavad Gita, que «o Espírito está em guerra com tudo o que não é o Espírito».

Sou «eu» o espírito ou a carne? (e deve-se recordar sempre que em metafísica a «carne» inclui todas as faculdades estéticas e recognitivas da «alma»). Pode-se pedir que se considere nosso reflexo em um espelho, e pode-se entender que ali vemos a «nós mesmos»; se somos algo menos ingênuos, pode-se pedir que se considere a imagem da psique como refletida no espelho da mente e pode-se entender que isto é o que «eu» sou; ou se somos ainda mais advertidos, pode-se chegar a compreender que não se é nenhuma destas coisas — que elas existem porque somos, mais bem que o que existamos devido a que elas são. O Vedanta afirma que «eu» em minha essência sou tão pouco afetado, ou somente afetado em tal medida, por todas estas coisas como um autor de teatro é afetado pela vista do que é sofrido ou gozado por quem se move na cena — neste caso a cena da «vida» (em outras palavras, o «campo» ou a «pradaria» enquanto distinguido de seu supervisor aquilino, o Homem Universal). Todo o problema do fim último do homem, a liberação, a beatitude ou a deificação é, por conseguinte, um problema de encontrar-se a «um mesmo» não já em «este homem» senão no Homem Universal, a forma humanitatis, que é independente de todas as ordens do tempo e que não tem começo nem fim.