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id da página: 13863 Pétrement – Potestades Simone Pétrement

Petrement Origem Poderes

Simone Pétrement – As origens cristãs do gnosticismo

PÉTREMENT, Simone. A Separate God: The Christian Origins of Gnosticism. San Francisco: Harper, 1984.

A Origem da Concepção de "Potestades"

  • A Pressuposição da Gnose Pré-Cristã em Relação a Paulo e João:

    • Não é absolutamente necessário pressupor uma Gnose pré-cristã para explicar a concepção das potestades ou anjos no Novo Testamento, especificamente em Paulo e João;
    • O Judaísmo é suficiente para explicar a ideia das potestades ou anjos que governam as coisas do mundo;
    • O Cristianismo, por sua vez, basta para explicar como essas potestades ou anjos puderam ser consideradas más, ou pelo menos ignorantes.
  • A Angelologia na Especulação Tardia Judaica:

    • Sabe-se que, de acordo com a especulação judaica tardia, cada categoria de coisas ou fenômenos possui seu anjo regente;
    • O Livro dos Jubileus menciona "os anjos do espírito do fogo, os anjos do espírito dos ventos, os anjos do espírito das nuvens, e da escuridão, da neve, do granizo, e assim por diante";
    • O Livro de Enoque nomeia o espírito do trovão e do relâmpago, o espírito do mar, o espírito da geada, o espírito da neve, e assim por diante;
    • Tal mitologia é, muito provavelmente, explicada como uma tentativa de adaptar as religiões pagãs ao Judaísmo, onde os deuses dos pagãos são considerados como anjos e, portanto, subordinados ao Deus único.
  • Filo e a Natureza dos Anjos como Intermediários e Potestades Cósmicas:

    • Filo afirma claramente que Moisés chama de anjos o que os filósofos denominam demônios, ou seja, seres divinos;
    • Para Filo, Deus "tem inumeráveis potestades ao Seu redor para ajudar e preservar as coisas criadas";
    • Algumas destas potestades são superiores ao mundo sensível, pois é por elas que Deus criou o reino inteligível;
    • Contudo, outras potestades, para as quais Filo mais propriamente reserva o nome de anjo, vivem no ar e atuam como intermediárias entre o mundo e Deus;
    • As estrelas também são, para ele, tipos de anjos ou potestades, e ele as considera os "governantes" dos anjos sublunares;
    • De modo geral, para Filo, os anjos estão relacionados à cosmologia.
  • A Equivalência Entre Anjos e o Mundo no Cristianismo Primitivo e em Paulo:

    • Esta mitologia judaica explica o fato de que para Paulo e outros cristãos primitivos existe uma ligação entre os anjos e o mundo, chegando por vezes a uma quase equivalência entre as duas expressões;
    • Quando Paulo diz: "Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos?", trata-se, sem dúvida, de uma simples repetição do que ele afirma no verso anterior: "Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo?";
    • Ao recordar aos Colossenses que estão "mortos para os rudimentos do mundo", é porque ele deseja alertá-los contra o "culto dos anjos", como se estar sujeito aos anjos ou aos rudimentos do mundo fosse a mesma coisa;
    • Quando o autor da Epístola aos Hebreus escreve: "Porque, na verdade, ele não se apegou aos anjos, mas à descendência de Abraão", ele talvez esteja expressando uma ideia análoga àquela enunciada por João ao fazer Cristo dizer: "Eu não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me tens dado";
    • Quando o autor da Ascensão de Isaías fala do que Isaías previu "acerca do julgamento dos anjos e da destruição do mundo," parece provável que se trate da mesma coisa repetida duas vezes;
    • Quando os cristãos primitivos se referem aos anjos, eles às vezes entendem os "anjos do mundo", e para eles, esses anjos representam o próprio mundo, o que pode ser bem explicado pelo mito judaico mencionado.
  • A Insuficiência da Explicação Judaica para o Caráter Mau ou Cego dos Anjos:

    • A explicação baseada no mito judaico ainda não consegue dar conta do caráter mau ou da cegueira dos anjos, pois os anjos que governavam as coisas do mundo no Judaísmo geralmente não eram malignos;
    • O Judaísmo conhecia anjos caídos que haviam incorrido na ira de Deus, mas os considerava privados de seu poder, há muito tempo castigados e aprisionados;
    • Também conhecia demônios, satãs, anjos de castigo, mas não os via como reinando sobre todo o universo, e ainda pensava que haviam recebido sua função de Deus;
    • Embora a visão do mundo variasse de mais otimista no Judaísmo ortodoxo para menos otimista nas seitas apocalípticas (que prepararam o caminho para a Gnose e o Cristianismo), mesmo nos escritos apocalípticos judaicos, geralmente não se encontram anjos maus governando o mundo;
    • No Livro dos Jubileus, lê-se que Deus destruiu há muito todos os demônios nascidos de anjos culpados, permitindo que apenas um décimo sobrevivesse a pedido de Mastema (ou Satanás), que precisava de sua ajuda para cumprir seu ofício de castigar;
    • Em Enoque, está escrito que os descendentes dos anjos culpados foram destruídos diante deles antes do seu aprisionamento, e as leis do mundo são tratadas com admiração, não sendo os anjos que governam as estrelas, os elementos e todas as criaturas considerados maus;
    • Nas apocalipses de Esdras e Baruc, os anjos são, em geral, servos obedientes de Deus, e não é evidente a existência de anjos do mundo que oprimem a humanidade, sendo que apenas o anjo da morte aparece como inimigo da humanidade, embora também seja retratado como um servo de Deus;
    • Nos Salmos de Salomão, o julgamento futuro é sobre os reis e seus povos, e não sobre os anjos;
    • No Manual de Disciplina, o Príncipe da Luz e o Anjo das Trevas são descritos como estando em proporção igual no mundo até a hora do julgamento;
    • Nos hinos de Qumran, os anjos das estrelas (o "Exército dos Céus," os "Valentes dos Céus," os "Filhos do Céu," o "Exército do Conhecimento," os "Santos") não são vistos com hostilidade, mas sim o contrário;
    • Em resumo, a era presente no apocalipsismo judaico é má no sentido de que nela as forças do mal lutam contra as forças da luz, mas o mundo não está completamente sujeito a elas, pois os demônios podem perturbá-lo, mas não o dominam, e o mal não cobre o mundo inteiro como na Primeira Epístola de João.
  • A Comparação do Dualismo Judaico e Neotestamentário e a Visão de Volz:

    • Volz observou que em parte alguma do apocalipsismo judaico se encontram expressões como "o deus deste século" ou "o príncipe do mundo" referindo-se ao diabo;
    • Volz escreve: "Uma comparação entre a literatura judaica e a do Novo Testamento sobre este ponto mostra que o dualismo do Novo Testamento é no geral mais profundamente arraigado do que no Judaísmo do mesmo tempo. No Novo Testamento, Satanás é... um adversário de Deus e o senhor do mundo; no Judaísmo, ele nunca perde tão completamente o caráter de um instrumento de Deus."
  • As Estrelas e a Astrologia no Judaísmo em Contraste com a Visão de Paulo e João:

    • Poder-se-ia contrapor a visão de Volz com o texto do Antigo Testamento onde Deus é visto a lidar severamente com as estrelas, que dominam o mundo na astrologia clássica e que penetrou profundamente o Judaísmo;
    • Quando se lê em Isaías que Deus "castigará o exército do alto," poder-se-ia pensar que se está muito perto do pensamento de Paulo e João, e também da Gnose, por parecer significar que as potestades que governam o mundo são más;
    • Contudo, este texto deve ser compreendido em comparação com outras passagens de Isaías que mostram que no dia de Iavé haverá perturbação e desordem mesmo para as estrelas, que serão obscurecidas e se apagarão;
    • Isto não significa que as estrelas sejam más, mas sim que a natureza inteira participará da convulsão introduzida no mundo humano pela intervenção de Deus;
    • Frequentemente nos profetas, a convulsão política que deve levar à libertação de Israel é descrita como uma convulsão de toda a natureza, e Iavé, que intervém a favor de Israel, é descrito como ferindo e destruindo a terra;
    • Isto não impede que a concepção do mundo seja em geral otimista, e a libertação de Israel é geralmente concebida como ocorrendo neste mundo.
  • Exceções e a Incerteza da Antiguidade de Certos Textos Apocalípticos:

    • Numa passagem do Livro de Enoque, vê-se que no dia do julgamento haverá desordem nas estrelas, mas isso se deve à desordem em toda a natureza;
    • Por outro lado, no quinto livro dos Oráculos Sibilinos, as estrelas são mencionadas como potestades guerreiras cujas batalhas Deus tolera pacientemente e que são, portanto, potestades más;
    • Entretanto, nesse mesmo livro, há uma passagem que é manifestamente cristã, resultando na impossibilidade de se ter certeza de que este livro representa o apocalipsismo judaico anterior ao Cristianismo.
  • A Ignorância dos Anjos em Relação ao Conhecimento de Deus no Judaísmo:

    • Os judeus consideravam que os anjos do mundo eram certamente ignorantes no sentido de que não conheciam a essência de Deus, já que ela é incognoscível para todas as criaturas, e não eram tão sábios quanto Deus;
    • Porém, eles não eram tidos como particularmente ignorantes ou cegos, sendo que, nos hinos de Qumran, os anjos das estrelas eram chamados o Exército do Conhecimento e os espíritos do conhecimento;
    • É verdade que numa das partes mais antigas do Livro de Enoque há uma referência à ignorância dos "pastores," que representam os anjos (provavelmente os anjos das nações);
    • Contudo, o que os anjos não sabem é simplesmente o julgamento que os aguarda, o julgamento final, tal como todos os seres não o conhecem;
    • Isto se enquadra nas ideias apocalípticas e está próximo do Cristianismo ou da Gnose, mas ainda não é exatamente o mesmo, pois os anjos ignorantes na Gnose são ignorantes por não conhecerem o Deus verdadeiro, e os governantes paulinos são ignorantes porque, sem sabê-lo, crucificaram o Senhor da Glória;
    • Em contraste, os anjos no Judaísmo conhecem o Deus verdadeiro, mesmo os demônios, que por vezes lhe dirigem pedidos, e os anjos das nações, que Deus encarregou de castigar Israel (embora às vezes excedam estas ordens castigando com demasiada severidade).
  • A Crítica à Explicação Pelos "Anjos das Nações" e a Perspectiva de Paulo:

    • Pelo conceito dos "anjos das nações", alguns estudiosos pensaram ser possível explicar o juízo pessimista lançado sobre os anjos do mundo pelos maiores autores do Novo Testamento;
    • No Judaísmo, encontra-se a ideia de que cada nação é governada por um anjo, exceto Israel, cuja cabeça não é um anjo, mas o próprio Deus;
    • Os judeus consideravam os anjos das nações pagãs como anjos maléficos, encarregados de enganar as nações, levando-as a lhes prestar homenagem que era devida apenas ao único Deus de Israel, e também encarregados de castigar e oprimir Israel durante um certo tempo;
    • Mesmo o fato de estes anjos serem concebidos como instituídos por Deus para desorientar as nações e castigar Israel demonstra, sem dúvida, que eles não ignoravam o Deus de quem haviam recebido as suas ordens;
    • Além disso, não é evidente, seja em Paulo ou entre outros cristãos do primeiro século, que os anjos das nações fossem uma preocupação especial, pois os anjos ou potestades de que falam parecem ter uma relação com toda a natureza;
    • Embora estejam ligados às autoridades políticas, uma vez que são responsáveis pela morte de Cristo, a busca de uma explicação nos anjos das nações parece ir na direção errada;
    • A razão pela qual Paulo considera os anjos do mundo ou os governantes desta era maus ou, pelo menos, cegos, é bastante clara e é adequadamente explicada pelo próprio Cristianismo.
  • A Ignorância dos Governantes em Paulo e João Derivada da Crucificação:

    • Para Paulo, tal como para os gnósticos, os governantes são ignorantes em vez de maus, e o são por não terem conhecido a sabedoria de Deus, que estava oculta e reservada aos cristãos, "porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da Glória";
    • Em outras palavras, é a crucificação que demonstra a cegueira dos governantes;
    • O que a ignorância dos governantes-criadores significa na Gnose senão a ignorância do mundo sobre o verdadeiro bem, o verdadeiro Deus, que ele não reconheceu no Justo;
    • João afirma, direta e sem metáfora, que o mundo não conheceu a Deus, assim como não conheceu a Cristo e não conhece o Espírito da Verdade;
    • Paulo também afirma: "... na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus por meio da sabedoria."
  • As Afirmações de Paulo e João sobre o Mundo e o Desejo de Separação:

    • As declarações de Paulo e João sobre o mundo explicam o seu juízo a respeito das potestades cósmicas;
    • Paulo diz: "Para que não sejamos condenados juntamente com o mundo..."; "Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo"; "Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, mas sim o Espírito que provém de Deus"; "Segundo os rudimentos do universo e não segundo Cristo..."; "Para que toda boca se feche, e todo o mundo seja responsável perante Deus...";
    • Devem ser acrescentados a estes os textos em que Paulo fala do "tempo presente," ou seja, do "século," visto que algumas passagens mostram que ele quase não faz distinção entre o século e o mundo, dizendo deste século: "Jesus Cristo, nosso Salvador, o qual a si mesmo se deu por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau..."; "Não vos conformeis com este século";
    • João escreve: "Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim"; "O mundo me odeia porque eu dou testemunho de que as suas obras são más"; "Eu venci o mundo"; "Porque tudo o que é nascido de Deus vence o mundo"; "Não ameis o mundo nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas é do mundo"; "Eles são do mundo... nós, nós somos de Deus"; "O mundo inteiro jaz no poder do maligno";
    • Tais afirmações demonstram que uma parte inteira do pensamento de Paulo e de João implica um desejo apaixonado de se desapegar do mundo, e isso explica adequadamente o seu juízo sobre os anjos do mundo, sendo este sentimento contra o mundo adequadamente explicado pela ideia da cruz.
  • A Condenação do Mundo por Outros Escritores Neotestamentários:

    • Não são apenas Paulo e João que escrevem dessa forma sobre o mundo;
    • O autor da Epístola aos Hebreus diz: "Pela fé condenou o mundo e se tornou herdeiro da justiça que é segundo a fé";
    • A Epístola de Tiago diz: "Guardar-se incontaminado do mundo..."; "Não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto, qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus";
    • A noção de estranho, isto é, estranho ao mundo, tão característica da Gnose, também se encontra, fortemente acentuada, no Novo Testamento.
  • Conclusão sobre a Origem da Concepção dos Anjos Ignorantes no Novo Testamento:

    • A concepção dos anjos ignorantes do Novo Testamento, análoga à dos gnósticos, não é outra coisa senão o mundo ignorante, o mundo que condenou a Cristo;
    • Esta concepção não provém de outra fonte que não seja o próprio Cristianismo.