PÉTREMENT, Simone. A Separate God: The Christian Origins of Gnosticism. San Francisco: Harper, 1984.
Objeções possíveis ao Demiurgo
Mas os gnósticos não terão renunciado a uma teologia da cruz? Diz-se que eles eram docetistas, e de facto encontram-se textos gnósticos que parecem justificar esta acusação. Eles frequentemente parecem dizer que o corpo de Cristo e a sua crucificação não teriam sido mais do que aparências. Mas não será isso porque, para eles, o que acontece no mundo não é uma revelação da verdade, não será precisamente por isso que foi tratado como aparência? Pelo menos à partida, isso talvez significasse não que o evento não tivesse acontecido, mas que ele tinha um significado muito diferente do aparente. Esta derrota era uma vitória. Era a libertação da humanidade, o cumprimento da vontade divina, o fim do reinado incontestado dos "poderes". Se a cruz não tivesse significado para os gnósticos, não se poderia explicar o facto de o seu pensamento ter tantas ligações com o de Paulo e João, para quem a cruz é o ensinamento que traz a salvação e que contém a essência do cristianismo.
Paulo foi talvez o primeiro cristão a atribuir um significado decisivo à cruz, e João, um pouco mais tarde, deu-lhe a mesma importância. Ora, Paulo e João são sem dúvida os teólogos a quem se deve, se não a ideia da divindade de Cristo, pelo menos a ideia de que essa divindade era primordial e consubstancial. Para a primeira comunidade cristã, em Jerusalém, parecia óbvio que, em origem e natureza, Cristo não teria sido desde o início senão um homem como os outros, ainda que mais justo do que qualquer outro. Era um homem que, em recompensa pelos seus méritos, Deus teria ressuscitado e depois elevado até si. Para esta comunidade, ainda estreitamente ligada ao judaísmo, não teria havido descida do divino, mas antes uma elevação, uma apoteose, de um ser que era em primeiro lugar humano. Para Paulo e João, pelo contrário, Cristo é um ser divino pré-existente, ele é o Filho de Deus, descido do céu, o que queria dizer que, de certo modo, ele não era o que parecia ser. Esta representação poderia facilmente levar ao docetismo; pois o desejo de acentuar a divindade de Cristo é a raiz do docetismo. É notável que a representação de um Cristo que é essencialmente divino tenha aparecido precisamente nos dois teólogos que atribuíram a maior importância à cruz. Deve notar-se também que, sendo a cruz para Paulo e João o evento pelo qual Cristo venceu os poderes, ela também não era exactamente o que parecia ser.
Implícita no pensamento de Paulo está a ideia de que Cristo (ou Deus por meio de Cristo) de algum modo armou uma cilada aos poderes. Se eles tivessem conhecido Cristo pelo que ele era, não o teriam crucificado; portanto, a crucificação foi necessária para permitir que o homem escapasse a eles. Os poderes teriam sido enganados pela aparência de um homem que não era apenas um homem. Este erro foi o início da sua queda, que em breve seria consumada. Deste modo, havia elementos no paulinismo que poderiam levar a uma interpretação docética da cruz. Em aparência, a cruz não teria sido mais do que uma tortura hedionda; na realidade, era também algo mais. Com o desejo de salientar a divindade de Cristo, a ideia de que a cruz teria sido o resultado de algum tipo de erro por parte dos poderes parece-me estar na raiz do docetismo gnóstico.
Além disso, certas ideias peculiares ao Evangelho de João também podem aproximar-nos do Docetismo, como se verá.
Permanece outra dificuldade. Explicamos o fosso entre os dois mundos pela ideia da novidade absoluta da mensagem cristã. Mas terá a revelação de um salvador sido assim tão nova para os gnósticos? Sabemos que foi absolutamente nova para Marciom. Mas para outros? Em mais de uma doutrina ou obra gnóstica, diz-se que a revelação da verdade tinha sido efectuada mesmo antes da vinda do Salvador. Para os valentinianos, por exemplo, uma emanação divina, Sofia (Sabedoria), tendo-se tornado imperfeita mas ainda assim conhecendo de algum modo o verdadeiro Deus, teria frequentemente falado pela boca dos profetas judeus. Os valentinianos pensavam que o Deus desconhecido tinha verdadeiramente sido revelado apenas por Cristo, mas atribuíam, no entanto, um valor a certas partes do Antigo Testamento. Além disso, talvez para Valentim, e em todo o caso para outros gnósticos, as revelações que desceram ao mundo do verdadeiro Deus teriam sido feitas desde o início da história, ao primeiro homem, Adão, ou ao seu filho Sete, e teriam sido preservadas no mundo por homens a quem certos gnósticos chamavam os descendentes de Sete. (Pelo menos é isto o que alguns estudiosos pensam poder concluir dos mitos chamados "setianos".) Finalmente, para alguns gnósticos, e em particular para Valentim, alguma ideia da verdade teria sido dada aos próprios pagãos. Assim, a novidade da mensagem não parece ter tido a mesma importância fundamental para todos os gnósticos. Como poderia então esta ideia de novidade ter desempenhado o papel fundamental que lhe atribuímos?
Mais uma vez, trata-se de ser claro quanto às datas. Valentim parece ter-se preocupado em reabilitar certas partes do Antigo Testamento e em atenuar a divisão demasiado enfática que os primeiros gnósticos tinham feito entre a antiga revelação e a nova. Veremos que tal preocupação nos permite explicar a maioria dos elementos da sua doutrina. Mas, na realidade, os traços característicos do Demiurgo são, no pensamento de Valentim e dos seus discípulos, muito menos acentuados do que em gnósticos como Saturnino, Basilides (o de Ireneu), Carpócrates e Marciom. Ele herdou esta figura e preservou-a, mas relacionou-a com o verdadeiro Deus. A doutrina de Valentim pode ser entendida como um gnosticismo que, até certo ponto, reage contra as ideias excessivas dos primeiros gnósticos.
É natural que o entusiasmo pelo Salvador tenha levado imediatamente a uma insistência na novidade e singularidade absoluta da sua mensagem. Ou se não imediatamente, é natural que tenha sido salientada a partir do momento em que a nova religião, definitivamente rejeitada pela antiga, teve de perceber que era outra religião. Mas também é natural que depois alguém como Valentim, que conhecia bem o judaísmo e o helenismo, tenha pensado que mesmo antes de Cristo certas ideias cristãs ou ideias tendentes para o cristianismo poderiam ter sido concebidas. Especialmente porque os textos do Novo Testamento, que foram cada vez melhor colecionados durante o segundo século, forçavam a perceber que os fundadores do cristianismo apelavam ao Antigo Testamento. Para negar as ligações entre o Novo Testamento e o Antigo, teriam de ser cortadas muitas passagens, mas Marciom foi o único que ousou fazê-lo. Valentim parece ter tido um espírito aberto e amplamente tolerante. Ele parece ter desejado não só conciliar tanto quanto possível as diversas tendências que apelavam ao cristianismo, mas também dar um lugar justo ao judaísmo e ao helenismo no conhecimento da verdade.
Quanto àqueles chamados Ofitas ou Setianos, cujos mitos relatam que revelações foram enviadas pelo verdadeiro Deus no início da história humana, veremos que as suas doutrinas são melhor compreendidas em grande parte como derivadas do valentinianismo do que como as doutrinas primitivas que inspiraram as ideias de Valentim e da sua escola. Os textos que temos de Valentim e dos seus primeiros discípulos não sugerem que eles conheciam estas doutrinas. Pelo contrário, eles mostram que as ideias valentinianas devem ter preparado o caminho e inspirado estas doutrinas, e são as suas condições prévias necessárias. Em particular, veremos que o tema dos "quatro illuminadores", que é uma das suas principais características, não pode ser totalmente explicado exceto por especulações encontradas nos primeiros valentinianos; ao passo que essas especulações valentinianas só com dificuldade podem ser explicadas pelos textos setianos e ofitas relativos a este tema.