Mircea Eliade
Parece impossível escrever sobre Orfeu e o orfismo sem irritar certa categoria de estudiosos: quer os céticos e os "racionalistas", que minimizam a importância do orfismo na história da espiritualidade grega, quer os admiradores e os "entusiastas", que nele veem um movimento de enorme alcance 1
.
A análise das fontes permitem-nos distinguir dois grupos de realidades religiosas: 1) os mitos e as tradições fabulosas relacionados com Orfeu; 2) as ideias, crenças e costumes vistos como "órficos". O citaredo é mencionado pela primeira vez no século VI pelo poeta Ibico de Région, que alude a "Orfeu de nome célebre". Para Píndaro, Orfeu é "o tocador de phórmigx2 , pai dos cantos melodiosos" (Píticas, IV, 177). Ésquilo evoca-o como "aquele que, com os seus acentos, mantém encantada toda a natureza" (Agamêmnon, 1630). É representado, a bordo de uma nau, a lira entre as mãos, e com o nome expresso sobre uma métopa do século VI pertencente ao tesouro dos siciônios em Delfos. Do século V em diante, a iconografia de Orfeu vai-se enriquecendo de maneira contínua: vemo-lo a tocar lira e cercado de pássaros, de animais selvagens ou ainda dos fiéis trácios. É dilacerado pelas Mênades ou encontra-se no Hades ao lado de outras divindades. Ainda do século V datam as primeiras alusões à sua descida aos Infernos para resgatar a sua esposa Eurídice (Alceste, 357 s.). Não teve êxito ou porque, demasiado cedo, voltou-se para a olhar{FOOTENOTE()/}As fontes acham-se analisadas por W. K. C. Guthrie, Orpheus and Greek Religion, pp. 29 s. e Ivan M. Linforth, The Arts of Orpheus.{FOOTNOTE}, ou porque as forças infernais se opuseram ao seu intento3 . Segundo a lenda, viveu ele na Trácia, "uma geração antes de Homero"; no entanto, a cerâmica do século V representa-o sempre em traje grego, encantando com a sua música animais selvagens ou bárbaros4 . Foi na Trácia que Orfeu encontrou a morte. Segundo As Bassárides — drama perdido de Ésquilo —, Orfeu, todas as manhãs, subia ao monte Pangeu, a fim de adorar o sol, identificado com Apolo; irritado, Dioniso enviou contra ele as Mênades; o citaredo foi estraçalhado e teve os membros dispersados5 . A sua cabeça, deitada ao Hébron, flutuou cantando até Lesbos. Piedosamente recolhida, passou a servir de oráculo.
Teremos oportunidade de lembrar outras alusões a Orfeu na literatura dos séculos VI e V. Observemos, por enquanto, que o prestígio de Orfeu e os episódios mais importantes da sua biografia lembram, estranhamente, as práticas xamânicas. Tal como os xamãs, é curandeiro e músico; encanta e domina os animais selvagens; desce aos Infernos para resgatar Eurídice; a sua cabeça cortada é conservada e serve de oráculo, tal como, ainda no século XIX, os crânios dos xamãs iucajires6 . Todos esses elementos são arcaicos e contrastam com a espiritualidade grega dos séculos VI-V; mas ignoramos a sua proto-história na Grécia antiga, ou seja, a sua eventual função mítico-religiosa antes de serem incorporados à lenda órfica. Além disso, Orfeu estava relacionado com uma série de personagens fabulosas — Ábaris, Arísteas etc. — igualmente caracterizadas por experiências extáticas de tipo xamânico ou paraxamânico.
Tudo isso bastaria para situar o cantor lendário "antes de Homero", como alegava a tradição e como repetia a propaganda órfica. Pouco importa se essa mitologia arcaizante foi, em parte, o produto de uma reivindicação suscitada talvez por certos ressentimentos. (É possível, na verdade, discernir por trás da mitologia o desejo de projetar Orfeu nos tempos prestigiosos das "origens" e, por conseguinte, de proclamá-lo "o ancestral de Homero", mais velho e mais venerável que o representante, o próprio símbolo, da religião oficial.) É importante o fato de que se tenham escolhido com cuidado os elementos mais arcaicos a que podiam ter acesso os gregos no século VI7 . A insistência com que se evocavam a estada, a pregação e a morte trágica de Orfeu na Trácia8 corroborava a estrutura "primordial" da sua personagem. É igualmente significativo que, entre as raras descidas aos Infernos atestadas na tradição grega, a descida de Orfeu se tenha tornado a mais popular9 . A catábase é solidária dos ritos iniciatórios. Ora, o nosso Cantor era tido como "fundador de iniciações" e de Mistérios. Segundo Eurípides, ele "mostrou as tochas dos mistérios indizíveis" (mustêríôn te tôn aporrêtôn phanàs édeixen Orpheús) (Reso, 943). O autor do Contra Aristogíton A (§ 11) afirmava que Orfeu "nos mostrou as iniciações mais sagradas", referindo-se, provavelmente, aos Mistérios de Elêusis.
Finalmente, as suas relações com Dioniso e Apolo confirmam-lhe a reputação de "fundador de Mistérios", pois trata-se dos únicos deuses gregos cujo culto envolvia iniciações e "êxtase" (evidentemente, êxtase de tipos diferentes, ou até antagônicos). Desde a Antiguidade, essas relações deram lugar a controvérsias, Quando Dioniso tira do Hades sua mãe, Semeie, Diodoro (VI, 25, 4) nota a analogia com a descida de Orfeu em busca de Eurídice. O despedaçamento deste último pelas Mênades pode também ser interpretado como um ritual dionisíaco, o sparagmós do deus sob a forma de um animal (cf. § 124). Orfeu, porém, era conhecido principalmente como o fiel por excelência de Apolo. Segundo certa lenda, era mesmo o filho do deus e da ninfa Calíope. Deve a sua morte violenta à devoção que mostrava para com Apolo. O instrumento musical de Orfeu era a lira apolínea10 . Finalmente, na qualidade de "fundador de iniciações", Orfeu atribuía grande importância às purificações, e a káthawis era uma técnica especificamente apolínea11 .
Vários traços são dignos de menção: 1) embora o nome e certas alusões ao mito sejam atestados apenas do século VI em diante, Orfeu é uma personagem religiosa de tipo arcaico. Pode-se facilmente supor que ele viveu "antes de Homero", entendendo-se essa expressão quer cronológica, quer geograficamente (isto é, numa região "bárbara", ainda não afetada pelos valores espirituais específicos à civilização homérica). 2) A sua "origem" e a sua, pré-história nos escapam, mas Orfeu não pertence decerto à tradição homérica, nem à herança mediterrânea. As suas relações com os trácios são bastante enigmáticas, pois, de um lado, goza dos prestígios mágico-religiosos pré-helênicos (domínio sobre os animais, catábase xamânica). Morfologicamente, aproxima-se de Zálmoxis (§ 179), também fundador de Mistérios (por meio de uma catábase) e herói-civilizador dos getas, esses trácios "que se acreditavam imortais". 3) Orfeu é apresentado como o fundador de iniciações por excelência. Se o proclamam como "antepassado de Homero" é para melhor salientarem a importância da sua mensagem religiosa. Esta contrasta radicalmente com a religião olímpia. Ignoramos o essencial da iniciação tida como "fundada" por Orfeu. Dela conhecem-se apenas os atos preliminares: vegetalismo, ascetismo, purificação, instrução religiosa (hieroi lógoi, livros). Dela também se conhecem as pressuposições teológicas: a transmigração e, por conseguinte, a imortalidade da alma.
O destino post mortem da alma constituía, como já vimos (§ 97), o objetivo das iniciações eleusinas, mas os cultos de Dioniso e Apolo também envolviam a sorte da alma. Parece, portanto, plausível que, nos séculos VI e V, se tenha visto na figura mítica de Orfeu um fundador de Mistérios que, mesmo inspirando-se nas iniciações tradicionais, propunha uma disciplina iniciatória mais apropriada, já que levava em conta a transmigração e a imortalidade da alma.
Desde o princípio, a figura de Orfeu surge sob os signos conjugados de Apolo e Dioniso. O "orfismo" desenvolver-se-á na mesma direção. Não se trata de um exemplo isolado. Melampo, o adivinho de Pilos, embora fosse o "preferido de Apolo", foi ao mesmo tempo "quem explicou aos gregos a figura de Dioniso, o sacrifício que lhe é oferecido e a procissão do phallós" (Heródoto, II, 49). Aliás, como vimos (§ 90), Apolo tinha certa relação com o Hades. Por outro lado, ele terminara por fazer a paz com Dioniso, que acabava de ser admitido entre os Olímpicos. Essa aproximação entre os dois deuses antagônicos não é destituída de significado. Será que o espírito grego não exprime dessa maneira a sua esperança de encontrar, através de tal coexistência entre os dois deuses, a solução para as crises desencadeadas pela ruína dos valores religiosos homéricos?