CARREIRA DAS NEVES, Joaquim. Escritos de São João. Lisboa: Universidade Católica, 2004
O autor do quarto evangelho, na sua prossecução de apresentar Jesus como a alternativa “divina” ao judaísmo, e,por ele, ao mundo, entrega-nos a belíssima narrativa do quarto capítulo sobre o novo sinal relacionado com a religião dos samaritanos.
Começa por afirmar que Jesus deixou a zona geográfica da Judeia para se refugiar na Galileia porque “os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia mais discípulos e batizava mais do que João” (v. 1). E realmente estranha tal afirmação: Jesus tem medo dos fariseus por “fazer mais discípulos e baptizar mais do que João Baptista”. A estranheza da afirmação tem, no entanto, um certo ar de verdade histórica porque logo a seguir, como que em parêntesis, corrige:“embora não fosse Jesus a baptizar, pois os discípulos é que batizavam” (v. 2). Não se trata dos “discípulos” de João Baptista, mas dos de Jesus, o que significa que Jesus abrira uma brecha na unidade dos discípulos do Baptista. Os Sinópticos nada dizem sobre o assunto, mas, partindo do princípio que Jesus passou algum tempo no círculo da comunidade fio Baptista e trouxe ao de cima a questão teológica sobre a natureza do baptismo (3, 25-26), é natural que alguns discípulos do Baptista aderissem às teses de Jesus. Neste particular, como já vimos, o quarto evangelho estaria mais de acordo com a história factual do que os Sinópticos.
Mas a história factual termina aqui porque o que se segue é um grande sinal do quarto evangelho em estilo de narrativa teológica-cristológica. De facto, a narrativa, depois de apresentar as ordens de Jesus aos discípulos para comprarem, em Sicar, o necessário para comerem, e depois de apresentar um grande diálogo de Jesus com uma mulher samaritana, que, como consequência, leva os samaritanos a convidarem Jesus a ficar com eles “dois dias”, acabam por acreditar em Jesus como “o verdadeiro Salvador do mundo”: “Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (v. 42).
Já dissemos que tal “conversão” não se pode tomar como verdade de história factual porque contradiz os dados de Ac 1,8 (onde o Ressuscitado determina o “mandato” apostólico: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, toda a Judeia, Samaria e até aos confins da terra”), de Ac 8,14-25 (foi o diácono Filipe o primeiro a converter alguns samaritanos), de Lc 9,51-56 e paralelos (os samaritanos recebem mal Jesus) e de Mt 10,5 (Jesus proíbe os doze de evangelizar os pagãos e os samaritanos) .A cena do quarto evangelho é uma grande parábola em ação do seu autor, uma espécie de “midrache”, para apresentar Jesus como o verdadeiro Salvador, não apenas dos judeus, mas de todo o mundo. Se os samaritanos assim acreditam, também os fariseus e demais judeus e pagãos devem acreditar.
Mas o autor da narrativa não parte do nada, porque tem como cenário a história da Samaria e a história de cristãos joânicos samaritanos. Este aspecto fica claro com a frase do v. 4: “Precisava de passar pela Samaria”, conjuntamente com a frase do v. 39: “Porque eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga.”
BARNHART, Bruno. The Good Wine: Reading John from the Center. New York: Paulist Press, 1993.
Jesus passa pela Samaria. Imediatamente após a narrativa de Caná, esta é outra mudança abrupta de cenário — da localidade natal de Jesus para uma terra estranha, da mãe de Jesus e da celebração do casamento local, com sua sugestão de inocência, para esta mulher solitária, uma estranha, que teve um passado diversificado.
O relato do encontro de Jesus com a mulher samaritana no poço (capítulo 4) coloca-nos rapidamente em contacto com limites externos. Entrou-se na localidade de uma tradição religiosa hostil ao judaísmo, e a aparente promiscuidade sexual desta mulher corresponde ao desvio religioso dos samaritanos. Quando Jesus pede de beber a esta mulher, o jovem rabi próprio ultrapassa os limites da religião convencional; o que João sugere, no entanto, vai além disso.
"O poço de Jacob estava ali." Este poço permanecerá, como imagem dominante, em pano de fundo do diálogo que se segue. O poço, e o encontro de homem e mulher no poço, são motivos arquetípicos. Têm também um fundo bíblico que é uma chave para a compreensão da nossa história. Há vários encontros em poços no Antigo Testamento que estão relacionados com noivados e casamentos: o servo de Abraão encontra uma noiva para o filho Isaac junto a uma fonte (Génesis 24:42-67); no poço Jacob encontra Raquel, que se torna sua esposa (Génesis 29:9-30); e é num poço que Moisés encontra Zipora, a filha do sacerdote de Midiã, que ele logo desposa (Êxodo 2:15-21).
A cena do encontro de Jesus com a mulher samaritana é, então, implicitamente nupcial, apesar das suas aventuras matrimoniais passadas e da união ilícita presente. Este é o poço de Jacob, e é provavelmente à história de Jacob e Raquel que se é remetido aqui. A história segue-se imediatamente ao sonho de Jacob em Betel.
Os pastores dizem a Jacob que são de Harã e apontam-lhe a filha do seu parente, Labão, a aproximar-se do poço:
Quando Raquel chegou com as ovelhas do seu pai,
Jacob e Raquel encontram-se no poço ao meio-dia, antes da reunião dos rebanhos. Ele remove a pedra, dá de beber aos seus rebanhos e beija-a, e eles tornar-se-ão homem e mulher. Quando Jesus se levanta do túmulo, o sol ascende ao seu zênite nos céus. A pedra é rolada do poço e a água viva jorra para dar de beber aos seus rebanhos; não apenas aos seus próprios discípulos mas às "outras ovelhas" (10:16) que virão, representadas pelos samaritanos. Os outros episódios do sexto dia também refletirão esta antiga história.
A menção da própria necessidade física de Jesus, aqui e no seu pedido de água, é invulgar em João. Estas declarações não são simples indicações de que Jesus partilha a condição humana; elas têm um peso simbólico. É cerca da hora sexta: meio-dia, hora de interromper a viagem e comer algo. E assim os discípulos vão comprar comida. Jesus chegou, simbolicamente, ao ponto médio da sua jornada, o seu apogeu; em breve estará novamente a viajar em direção a Jerusalém e ao fim da jornada.