Filosofia
Hannah Arendt: A VIDA DO ESPÍRITO
A autonomia das atividades mentais, além disso, implica também que essas atividades não são condicionadas; nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente. Pois a "tranquilidade desapaixonada" da alma não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade mental, a premência de pensar, como também a "necessidade da razão", na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. É certo que os objetos do meu pensar, querer ou julgar, aquilo de que o mente se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente — limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes —, podem mentalmente transcender todas essas condições, mas só mentalmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade — como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer —, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do mente. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e "não nos dotam diretamente com o poder de agir" (Heidegger). A ausência de pensamento é um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. A premência, a a-scholia dos assuntos humanos, requer juízos provisórios, a confiança no hábito e no costume, isto é, nos preconceitos. Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: "A mente é separada de todas as coisas" (sophon esti panton kechorismenon). E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico.
Hermógenes Harada: Excertos de "DE ESTUDO, ANOTAÇÕES OBSOLETAS"
A palavra autonomia é grega e se compõe de auto e nomia. E significa independência, liberdade, o modo de ser dos que vivem segundo a sua própria lei. A palavra auto significa mesmo, em si, por e para si, pessoalmente, a partir de si. Mas propriamente auto indica um movimento, o movimento que podemos circunscrever como erguer-se a si mesmo, destacar-se, realçar-se, alçar-se, colocar-se a si mesmo a partir de si. Nomia vem de nomos, que usualmente traduzimos por lei, prescrição, ordem, mas também significa uso, costume, hábito, os costumes. Nomos por sua vez vem do verbo nemo (nemein) que significa repartir, partilhar; outorgar, conceder, conferir; receber como sua parte em uso, possuir; dominar, reger, administrar; habitar, cultivar a terra etc. Etimologicamente parece que o radical nem significa propriamente dobrar, curvar. O que têm todas essas significações variantes a ver com autonomia?
Numa conjetura diletante e "chutada" talvez se possa dizer que todas essas significações da palavra auto e nomos (nemo), de algum modo indicam um modo todo próprio de ser do empenho humano.
Tudo no ser humano é um erguer-se a si mesmo e nesse movimento constituir-se como ele mesmo. Nada no homem é ocorrência, nada nele é simplesmente dado, nenhum momento nele e dele é fato, mas sempre e cada vez de novo um ter que ser. Mesmo para o homem ser uma simples ocorrência, p. ex., ficar deitado num "dolce far niente" na cama, ele deve se alçar a si mesmo a partir de si. Isto ele não vê, se fica na cama ocasionalmente, mas se ficar, p. ex., três dias seguidos, sentirá com certeza o peso da fadiga do empenho do "far niente". Com outras palavras, para o homem ser, ele deve ser auto. Por isso, o termo auto de auto-móvel ou auto-mático, por exemplo, empregado para se referir a uma máquina, denota uma incompreensão total da palavra auto. O empenho humano e o próprio humano como tal, como o movimento de ter que ser, de ter que se pôr, se colocar a si mesmo a partir de si, têm o modo de ser de partilhar, repartir, não tanto no sentido usual dessas palavras, i.é, de distribuir, mas no sentido de uma referência ao ato de curvar(-se) e dobrar(-se). Isto é, em todo nosso empenho humano, o homem se dobra, se curva e nesse encurvamento, nessa dobra, se partilha a si, se participa de si, se dá, se outorga, se concede, e se confere a si mesmo e se recebe a si mesmo como sua parte em uso. Mas o que querem dizer todas essas insinuações? Talvez um exemplo possa salvar todo esse palavrório.