Antônio de Pádua tomava todas as coisas ao trágico, no seu tipo de «teólogo português, homem de acção, irascível, obstinado», a seu competidor acusando de destruir o estado evangélico que se havia prometido observar. Santo Antônio, que morreu em 1231, tivera tempo de conformar os seus confrades aos hábitos de espírito mais característicos dos espirituais, inspirando--lhes um respeito supersticioso pela letra mesma da Regra. Vê-se, pelos sermões do fogoso franciscano, quão grande valor ele atribuía às palavras de qualquer texto sagrado. Não são senão citações da Escritura, rapidamente comentadas. Até as próprias figuras simbólicas do Velho Testamento, ele as aplica com rigor à sua demonstração; «fora em Coimbra, no sopé das cátedras sábias dos agostinhos, que ele se adestrara — assegura-o o Snr. Gebhart — àquele método todo escolástico de predicação». Santo Antônio legara ainda aos seus uma tradição original dos observantes, a desconfiança contra o clero secular, contra os prelados e contra os bispos, levada por vezes até às raias do desprezo. Pregou contra a Igreja com um tom tão apaixonado como Savonarola, repreendendo-lhe as suas riquezas, o seu poderio, a sua sensualidade e a declinação dos bons costumes, com tanta cólera, buscando nos textos bíblicos as vivas imagens que o frade florentino há-de vir a evocar na famosa Quaresma de 1493. Circumdederunt me vituli multi: tauri pingues obsederunt me. Agravou este primeiro texto pela injúria sangrenta que Savonarola, por sua vez, tomará de empréstimo ao profeta Amós: Audite verbum, vaccae pingues. Tira desta inspiração um quadro duma trivialidade toda popular que Savonarola não ousará apresentar aos florentinos de Lourenço de Médicis: «A carne das bezerras está suspensa ao fumeiro, onde aguarda que a comam. Assim os demônios suspenderão ao fumeiro infernal a carne dos maus prelados, onde ela aguardará um incêndio mais cruel, as caldeiras ardentes de que fala a Escritura, isto é o inferno, o sítio do anátema, do luto, da inefável dor.»
Sem cessar, frei Antônio, a quem S. Francisco assevera o Snr. Gebhart que não dera nem a sua ternura nem a sua misericórdia, volvia a esta sátira veemente dos clérigos: os frades repetirão por longo tempo as mesmas invectivas; mas «esse Português clamará em altos brados à Itália a conclusão para que tinha preparado os seus ouvintes, a saber que o culto servido por clérigos avaros e libertinos é irrisório e estéril, indigno de Deus, que o rejeita, ineficaz para as almas (p. 196). Os nossos gordos cônegos julgam estar quites para com Deus se cantam, numa voz clara, no coro, uma aleluia ou um responso; após o que regressam a suas casas, para se divertir e cear à farta com os seus histriões e os seus juglares.’ Antônio era bom lógico em demasia para não ir até ao termo final de seu pensamento, por mais extraordinário que ele fosse: a verdadeira religião retirara-se da Igreja dos clérigos, dos prelados, dos doutores, para se refugiar entre os leigos (p. 197); ‘o Carmelo está invadido pelos tojos do deserto, porque os clérigos já não dão fruto, só os leigos têm a fé fecunda, clerici sunt infructuosi et laici fructuosi.’ (Opera, Migne, Patrol., tomo vi, p. 1206.)» Que tal a frase untuosa? E que tal o martelo das heresias?
Hoefer opina que os sermões de Santo Antônio são escritos no gosto do seu século: o sentido literal da Escritura é neles, diz, sacrificado a subtilezas místicas. Tiveram um êxito imenso; o que contribuiu para esse êxito, a aviso de Baillet, foi a opinião de que Deus havia tomado o seu servo tão poderoso em obras como em palavras e que, para lhe dar crédito sobre os espíritos, o favorecera com o dom dos milagres e o da profecia. Certo é que muitos pecadores abraçaram a penitência; e diz-se, diz Hoefer, que as confrarias dos flagelantes, que se continham então dentro de certos limites, deveram em parte a sua origem aos seus sermões. «A Antônio (escreve Brás Luís de Abreu) se deve o sanguinolento espectáculo dos Disciplinantes: de tanta edificação, se se executa com as devidas circunstâncias do pesar; como de escândalo, se se pratica com os néscios antojos da vanglória. Ainda mal, que há hoje tantos deste gênero de penitentes, que, idolatrando nos simulacros da vaidade, a dispêndios do seu próprio sangue, se fazem vítimas cio abismo, para serem Mártires do Demônio!»
Quer dizer, é Antônio de Pádua ou Antônio de Lisboa, estrutivamente um místico passional. Fora-o sempre? E alguma hora tivera nele presa a paixão da criatura, antes da sua ulterior absorção no Criador? Ao amor divino precedera em sua alma algum instante o amor humano? (Sampaio Bruno. OS CAVALEIROS DO AMOR OU A RELIGIÃO DA RAZÃO)
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